AS

 

 

 

 10 PENAS

 

 

 

 DE

 

 

 

 ARARACANGA

 

 

 

 

 

J. C. ARAGÃO

 

 

 

 

AS 10 PENAS DE ARARACANGA

 

 

                        “Todos quantos têm meditado na arte de governar o gênero humano acabam por se convencer de que a sorte dos impérios depende da educação da mocidade!” – ARISTÓTELES

 

                        I – PACATÃ ... ITAPARICA ... NHOESSEMBÉ

 

                        Ano de 1490 ... Noite alta. O Céu, como um grande manto de veludo azul profundo, se mostrava marchetado com miríades de estrelas cintilantes, quais pedra brilhantes, que pareciam conversar com Jaci (a lua), a qual, sorrindo feliz e pressagiando algo, derramava, por toda parte leste das Terras-Brasis, atingindo Itaparica (anteparas de pedras), Pacatã (Porto Seguro) e Nhoessembé (Ilhéus), os seus argênteos raios, qual revérbero prateado a iluminar toda a floresta, que, àquela hora, refazia-se do sol causticante com o frescor do sereno e dos zéfiros intermitentes, que provocavam sussurrante farfalhar na copa das frondosas árvores, o Ibajaú (pássaro noturno), de espaço em espaço, dava a nota de sua presença triste com o seu cantar noturno. As águas das cachoeiras, com suas gotas cristalinas, rumorejavam, à semelhança dos cânticos cismáticos das Iaras (habitantes das águas dos rios), no compasso dolente de um cantochão. As alvas areias das praias refulgiam ante o clarão da luz, e pareciam profetizar algo. O mar, em bramidos incessantes e com suas madeixas flutuantes, queria ou parecia querer revelar um mistério milenar e, também tudo o que ia acontecer... Na quietude da noite, a Taba dos Tupinambás (descendentes dos Tupis) dormia serena, ficando acordados, apenas, os Mainandares (os guerreiros), homens escolhidos para a guarda pessoal do cacique, e que encarregavam, também da proteção de toda Taba.

                        Na Oca Real (a habitação do cacique) estava o bom e sapiente morubixaba (cacique), que, de há muito, mostrava-se preocupado, apreensivo, pensando em sua tribo. Naquele momento, entretanto, velava o sono de sua filha BARTIRA. O másculo descendente Tupi (Filho de Tupã) levantou-se de sua pataqui (esteira de palha) e, em passos lentos, foi em direção à oquena (porta) de sua oca. Estava ele com os olhos fitos no céu quando uma jaci-tatá-bebê (estrela cadente) riscou o espaço infinito, demorando-se a apagar. TIBIRIÇÁ (vigilante da Terra) ficou lívido. De acordo com as crenças tupinambás, este sinal confirmava as suas apreensões e mais aumentava a sua angústia. Desviando seus olhos para a praia, o grande chefe pousou seu olhar no elegante Morotin (barco que levava na proa o “Maracá”: Pendão ou Estandarte dos tupis, considerado sagrado por eles) de sua Nação, que estava com amarras a uma grande pindoba (variedade de palmeira). Preocupado, mandou que um dos mainandares o retirasse daquele local e o conduzisse para a parte coberta da ocara (pátio da taba), entrando em seguida, em sua oca, com o corpo trêmulo e febril... Olhando com carinho para a inocente BARTIRA, que dormia em sono plácido, murmurou baixinho:

--Pobre filha minha, o que será de ti e de nossa querida taba?...            

     Encaminhou-se, a seguir, a um canto da oca e abriu um grande uru (cesto de cipó fino, trançado), onde estava guardado o sagrado e belo Maracá de sua tribo. O Maracá era tecido com arte e gosto, com lindas e raras penas de araras, nas cores verde e amarela, e era encimado por um campo esférico, na cor azul-anil, enfeitado com mboiras brancas (missangas), como se fossem jaci-tatás (estrelas) na majestosa e realenga Tapiirapé (Via Láctea). Levou ele o Maracá junto às suas faces requeimadas pelo sol, e ficou por longo tempo admirando-o, até que, por fim, recolocou-o em seu lugar. O valente cacique sofria... Sofria como um amoroso Taíta (Pai espiritual), que tudo de bom quer dar aos seus filhos. Sentia, naquele prenúncio cruel, que sua tribo tão querida, harmônica e coesa, seria retalhada e dispersa pelas caãs (florestas), fugindo de algo que a apavoraria e a dissolveria... Absorvido por estas amargas conjecturas, não percebeu ele que junto a oquena (porta), pesaroso e como que querendo ler na mente do cacique sua tão dolorosa preocupação, estava ICARAÍ (água boa e benfazeja), trazendo-lhe um guaraábuco (manto) de penas para que ele se agasalhasse.

          --Chefe, ICARAÍ pede licença e comunica que o Morotim já foi levado para a parte coberta da ocara, e traz este agasalho, pedindo também para TIBIRIÇÁ dormir, pois está muito cansado... Eu velarei seu sono e da cunhá-muca (donzela) BARTIRA. A guarda de sua escolha está bem atenta em seus postos e sempre vigilante.

TIBIRIÇÁ aceitou o guaraábuco, agradeceu, e, adiantando-se uns passos, trouxe ICARAÍ para dentro da oca. Olhando-o com bondade como se fosse seu pai, segurou-o pelo ombro, convidando-o a sentar-se em sua patagui, e lhe falou:

         --Meu leal e bom amigo! Meu pai, o Grande Itupeva (Cachoeira de águas claras), que Tupã (Deus) guarda no Nhuvaru-Porã (Campo dourando e bonito) e que foi a cachoeira de águas claras e sapiente tinha grande afeição por ti... Via em teus olhos o miruá (espelho) de tua alma, a retidão de princípios e aquilo que faz um grande e nobre guerreiro: a lealdade, a obediência e a coragem! Tu, apesar de moço, foste feito por meu pai Chefe Supremo dos Mainandares. Bem o mereces, pelos teus predicados e porque és um verdadeiro filho da Taba Tupi, a sempre exaltada e amada pelo bondoso SUMÉ (o Manu dos Tupis, que os ensinou a conhecer um só Deus, a fazer o fogo, a reconhecer as ervas medicinais, a usar a mandioca, etc.). E, como Chefe Supremo das Centúrias (a força armada dos Tupis, que se dividia em grupos de 100 homens), não poderias deixar de tomar parte no Grande Nhomonguetá (ou Karbeto, o Conselho dos Sete Anciãos, de que faziam parte o Morubixaba, o Pajé-catu e o Chefe dos Guerreiros. O cacique nada resolvia sem ouvi-los), junto com SAIXÊ (“pássaro de lindas plumagens coloridas”), o nosso estimado Pajé-catu (Mago ligado ao bom espírito; o sacerdote da tribo), o que muito orgulha a nossa Nação e a mim mesmo. Precisas estar a par de minhas apreensões, como também todo o nosso Venerando Karbeto. Eu descansarei sim, e dormirei um pouco, como também tu o deverás fazer, junto à tua amada IRACI (“doce mãe”), a filha do grande Jacumatã (estaca rija) e da Divina Potira (flor perfumada): a bravura e a beleza, que se imortalizaram na Nação Tupinambá, e que bem mereciam ser cantadas em nossas Porandubas (história, contos e poemas de uma nação). Darás ordens ao Chefe das Centúrias da Guarda para, quando chegar Araci, a divina mãe do dia, seja substituída a guarda, e só quando Cuaraci (o sol) novamente se esconder é que tu virás falar comigo, porque estás muito cansado e há muito que também não dormes... Quanto ao aviso para o Nhomonguetá se reunir, não te preocupes, eu providenciarei. Vai, meu bom ICARAÍ; descansa; e que Tupã vele seu sono, e sejas por Ele inspirado!...

          ICARAÍ conhecia bem o íntimo daquele valoroso morubixaba. Era a cópia fiel do Grande Itupeva, a quem ele servira com dedicação, e que se afeiçoara por ele, como um verdadeiro pai... Também ele sofria, por ver o Grande Cacique sofrer. A mesma angústia e apreensão ele também sentia. Algo viria alterar a vida calma em Pacatá, Itaparica e Nhoessembé... Levantou-se da patagui, trêmulo e nervoso... e, esquecendo-se de sua hierarquia, não conteve seus impulsos, abraçando-se com aquela estátua hercúlea de bronze, num amplexo que bem traduzia os sentimentos de sua alma leal e abnegada.

          TIBIRIÇÁ enlaçou ICARAÍ, compreendendo o quanto aquele comandado e irmão por Tupã lhe queria e estava solidário. Fazendo a saudação de estilo ao seu Chefe, retirou-se ICARAÍ com uma vareta de pau resinoso acesa, indo à procura do Chefe da Centúria da Guarda, para transmitir-lhe as ordens. Encontrando-o, deu-as e, logo a seguir, retirou-se, a caminho de sua oca...

        

         II – ICARAÍ EM SUA OCA

         

         ICARAÍ, recolhendo-se à sua oca, encontrou sua jovem esposa IRACI à dormir em sua espaçosa e artística upada (rede), que ele mesmo havia tecido com as mais resistentes fibras do crautá (a bromélia vulgar, de onde se tiram fibras mais finas que o linho) e colorido com tintas especiais, cujo segredo só ele sabia... Nos braços de sua jovem esposa, dormia a semente do seu amor, a perpetuação de sua espécie, abençoada por Perudá (Deus do amor puro), que, por vontade de sua companheira e em louvor a Cuaraci (o sol), recebeu este nome, daquele que é o doador da vida...

                        CUARACI era uma criança robusta, muito bonita e alegre, que sempre prestava atenção aos menores movimentos que se fizesse. Seus cabelos eram fartos, macios, e tinham a cor da Ibaúna (fruto de casca negra e luzidia). Seus olhinhos pareciam brilhantes mboíras pixunas (missangas negras). Seus bracinhos e perninhas eram fortes e estavam sempre em movimento; só paravam mesmo quando ele dormia. Boquinha pequenina, com os lábios da cor de pitanga madura, estavam sempre a sorrir quando sua mãe contava as doces e melodiosas baladas da sua tribo. Enfim, CUARACI era a alegria de um lar sadio e feliz.

Sua mãe tinha o corpo harmônico e delgado, com um talhe delicado, mas era muito desembaraçada, como a itacoebê (o azougue, mercúrio) e com uma percepção rápida das coisas. Seu semblante era sereno e belo. Cútis morena-pálida e aveludada, que irradiava uma luz opaca como o crepúsculo, e que ia de um gracioso fosco a um mate cambiante. Seus olhos era meigos e tinham a cor da jaboticaba sazonada, Sua boca, em proporção bem formada, com lábios bem carminados e lindos, mostravam dentes da cor do alabastro, que se harmonizavam bem com a sua cabeleira basta, negra e luzidia, como a humaitá (pedra negra), que brilha dentro das águas do imocoema (rio sereno). IRACI era como uma deusa Penates, que alimentava o fogo Perpétuo de seu Lar. Era a verdadeira Flor da Maternidade, a hipóstase-quaternária-humana-sublimada, que encarnava em uma só pessoa: a filha, a irmã, a esposa e a mãe!...

                        ICARAÍ, evitando fazer barulho para não acordá-los, contemplava aquela cena enamorada de Morfeu, com os mais puros sentimentos que lhe eram inerentes, cena que merecia ser pintada e emoldurada com as telas, os pincéis e as molduras de um pintor do Nhuvaru-Porã (Campo dourado e bonito: a Terra Divina)... Ficou ele assim algum tempo, mas logo o seu semblante se anuviou, quando se lembrou das apreensões do seu bom morubixaba (cacique). Ele não contaria à IRACI o que vinha acontecendo com TIBIRIÇÁ – cogitou ele – para não alarmá-la... Nesse instante, porém, talvez por qualquer umidade, o pau resinoso que ele trazia aceso, à guisa de tocha, estalou. O corpinho do pequerrucho CUARACI estremeceu, parecendo que ia despertar. Sua mãe, entretanto, que acordara no exato momento, embalou-o na rede, evitando, assim, que ele acordasse. Notando a presença de seu esposo, IRACI levantou-se da upaba sorrindo, enlaçando-o com um de seus braços, enquanto com o outro continuava a embalar a rede para que o seu rebento não acordasse. E assim ficou até que se fizesse final o seu pressentimento, quando, então, ela se deixou abraçar pelo seu bom e carinhoso companheiro. Ele, sorrindo e enleado por aquela alma virtuosa, saudou-a:

                        --Catu-Pituna-xe-anga-cõia!... (boa noite, minha alma gêmea).

                        --Catu-Pituna-xe-aussubipira!... respondeu ela (Boa noite, meu amado).

                        Se, para um terno enamorado, o objetivo sentimental á algo de maravilhoso, por certo é de se imaginar o que IRACI era para ele: uma alma pura e dedicada, envolta numa auréola de luz, onde transbordavam os mais puros sentimentos da beleza e do amor de Mãe Divina em seus cuidados de esposa e de mãe... E, naquela comunicação de almas, em que o sorriso era a voz do coração, como algo de sublime, em silêncio ICARAI ao seu Deus, agradecendo aquela união, que era o fanal e um refrigério para a sua alma atribulada por tão alta responsabilidade que lhe impunha o cargo que exercia na Nação Tupinambá. Naquela pausa, pedia ela a Tupã que inspirasse TIBIRIÇÁ, para que a sua angústia e apreensão não se transformassem em receio pela invasão por alienígenas e a conseqüente dissolução daquela tão querida, leal e heróica taba...      Ele queria servir ao seu Deus e dar de si também alguma coisa... algo que estava em seu interior... IRACI sorria e se sentia feliz; sabia que ICARAI a amava muito... De repente, começou ela a sentir uma benfazeja comoção, notando que as faces de seu esposo irradiava uma luz estranha, a princípio tênue, mas que depois começou a envolvê-lo. Numa fração de segundo, também a envolvia, parecendo transportá-los a uma outra dimensão... Então, uma voz se fez ouvir, parecendo vir por um tubo acústico, falando aos dois eternos namorados o seguinte:

                        --Meus filhos bem amados, que eu sempre velo e inspiro... O lar é um santuário e a família é a forja dos Deuses... A mulher é o veículo da transformação, que ajuda o homem a vencer a sua caminhada cheia de tropeços e de espinhos, para que nele desperte o seu Deus Interior, recebendo de Tupã o seu Estado de Consciência dualizado. Ela o alimenta e o aquece com o seu calor, velando-o e guardando-o em seu ventre como uma guardiã celeste... Ela luta pela vivificação do seu corpo, da sua alma e do seu espírito, conduzindo-o e para ele almejando as mais altas escaladas: um lugar junto ao sol!... Ela é a esposa e a mãe; a força do amor e da beleza! O homem é a força da idéia, que a eleva à inspiração divina... Ela vem das águas do Grande Rio; tem a cabeleira verde e a voz suave e sonora, que canta nas noites cheias de estrelas e enluaradas, e que Tupãci ( a Mãe Divina, esposa de Tupã) doou-a, juntamente com um pedaço de seu coração e um pouco de seu amor sublimado. Ele tem a Luz Rutilante de Cuaraci (o sol) e tem a cabeleira vermelha que lhe doou Tupã, juntamente com uma centelha de sua sabedoria e um rosário de suas idéias.

E assim, o coração e a mente caminharão juntos num mesmo trabalho de fusão, até chegarem ao ápice de um burilamento, onde se cristalizará o amor doado de Tupãci e a Sabedoria doada por Tupã. A família é, também, uma Obra da Divindade. Quando unida, e em havendo amor em seu seio, se harmonizará com Ela... Será amada, abençoada e inspirada, continuando sua evolução sem tropeços. Da família nascerão seres; cada um terá uma missão, um dever a cumprir, e, por sua vez, cada ser formará a sua própria família. Ela é e será sempre a ponte, o caminho, o alicerce para o trabalho de transformação, que ativará em cada ser os princípios para a superação de seu reino, que o tornará indiviso, porquanto sé encarnado é que o ser humano evolui... Por isso, encarnará quantas vezes forem necessárias!

                        Mutuamente, deverão amar-se e respeitar-se, conduzindo seus filhos com amor e sabedoria, sendo para eles verdadeiros guardiães e preparando-os sempre para o futuro... Afinal, ninguém é independente! Todos vivem em função de uma polaridade. Para sobrevivermos, é necessário reunirmo-nos em grupos, e estes reunirem-se no Todo. A natureza não dá nem poderá vir a dar saltos, porque obedece a ciclos transformadores dinâmicos. E o fruto que é forçado a amadurecer fora de seu tempo não terá uma poupa nutritiva, e o seu sabor não será adocicado... A evolução é o amálgama da Razão e do Amor-Sabedoria. Agindo no homem, o fará iluminado. Ela transforma a Vida-Energia em Vida-Consciência; a consciência da alma, em consciência do espírito, legando, assim, ao homem uma vida eterna, fazendo-o adquirir e gozar a sabedoria inata que nele se encontra latente e que é capaz de levá-lo à Morada dos Mundo sublimados...

                        Mas, nem todos sentem e conhecem (ou não querem conhecer) a Ecó (a Lei de Tupã, a Lei de Deus), e seus corações emperdenidos preferem trilhar outros caminhos, afastando-se de Tupã... Então, as águas dos rios secam... secando também as terras... Apodrecidos, os frutos caem da ibaraá (árvore frutífera). E o homem fica faminto e é obrigado a emigrar para outros lugares estranhos e doentios...

                        Jurupari (Deus do mal) o apoquenta com suas gargalhadas estrondosas e doestos repetidos, assustando-o todas as noites, não o deixando dormir sossegado. A fome, a prostituição, o crime e o adultério campeiam, semeando mais sofrimento e trazendo mais ignorância, porque a Essência é, então, absorvida pela Matéria embrutecida... E para que o homem não desça ao mais ínfimo dos degraus, vêm os cataclismos ceifadores de vidas, a rebelião dos elementais, para dar lugar a uma renovação de valores... E o homem espera, por longo tempo, uma nova oportunidade para ser reintegrado no seio de sua comunidade...

                        A Ecó é sábia, justa e perfeita! Mas, não vos assusteis. Muita coisa em Pacatá (Porto Seguro), Itaparica e Nhoessembé (Ilhéus) acontecerão porque está escrito... É a vontade de Tupã.

Tibiriçá vos ama como um verdadeiro Taitá (Pai espiritual). Não o abandoneis, porque ele precisará de todos... Muita coisa está escrita na Ita-Mongaraibipira (Pedra Sagrada) e irá acontecer. Mas, ai do alienígena aventureiro e mau que tocar nos fios de cabelo dos Tupis e de seus descendentes!... Nada deveis temer, meus filhos. Sede sempre fiéis a Tupã... Eu vos abençôo e também à vossa semente.

                        E, assim, a voz se foi extinguindo... extinguindo... até não mais ser ouvida...

O amoroso casal, surpreso e emocionado, continuava ainda unido num amplexo. E, naquele momento, alguém que contemplasse tão singelo quadro e tivesse o olho da terceira visão veria lindos seres extraterrenos cingindo as frontes daquelas duas almas com coroa de flores divinas: rosas sutis dos Jardins Celestinos, a espargirem de suas pétalas o mais odoroso e delicado perfume...

ICARAI estreitou a sua companheira ainda mais em seus braços. IRACI, compreendendo, olhou para seu esposo e perguntou:

                        --Ouviste, ICARAI?

                        --Sim, xe-anga-cõia (minha alma gêmea), ouvi. Eu só agora compreendi a vontade de Tupã, avaliando também as apreensões do nobre Tibiriçá e a expressão das suas palavras. Antes eu não te queria contar, temendo que te assustarias.

                        --Tibiriçá também teve visões ou audições?

                        --Não sei, minha IRACI, mas hoje senti-o abatido e, como tenho que voltar ao maratecó (serviço em grupo) logo após que Cuaraci (o sol) se ponha novamente no reiqueaba (oeste – ponto cardeal), avalio que o nosso bom cacique tivesse também ouvido a Grande Voz... Não ouvistes, IRACI, o que o Grande Espírito falou? Para não abandonarmos o nosso morubixaba, e que ele precisará de todos nós?...

                        --Sim, ouvi, meu amado. Nós jamais o abandonaremos!

E IRACI, zelosa com seus afazeres de esposa, sempre dando atenção ao seu companheiro, afastou-se e foi buscar no seu ataupaba (fogão de cozinha dos Tupis) que se conservava sempre aceso, o comandá (feijão), o abati (arroz), a jetica (batata) e a macaxera (mandioca) cozidos, a cheirosa carimã (bolo de taipoca assado na brasa, a cururuca (corvina, peixe) assada na brasa e trouxe tudo para a caruaba (pequena mesa), onde já havia uma cabeça d’água fresca uma íguaba (caneca de barro cozido e esmaltado) e demais utensílios que pudessem ser utilizados na refeição. IRACI serviu ao esposo e sentou-se ao seu lado na apicaba (pequeno banco). Seu companheiro comia com satisfação os alimentos, pois sua esposa preparava-os ao seu gosto. Quando ICARAI estava prestes a terminar, ela se levantou e foi buscar em seu uru (cesto feito com cipó fino) um nhae (prato de barro esmaltado), que estava coberto com pedaços de folhas de pacoba (bananeira), de onde exalava um cheiro gostoso... ICARAI já largava a ibirapecê (colher feita de bambu) quando a sua companheira deixava sobre a caruaba o manjar tão seu preferido: o delicioso manauê (bolo de fubá de milho com coco), adoçado e ornamentado com os favos de mel silvestre de abelhas jatis (variedade de abelhas).

                        O Chefe Supremo das Centúrias Tupinambás fixou seu olhar nos olhos de sua dócil, grácil e gentil companheira, sorrindo agradeceu:

                        --Angatu-xe-anga-côia... (obrigado, minha alma gêmea...).

                        IRACI, contente com a amabilidade de seu companheiro, respondeu com um sorriso de gratidão e foi colocar seu filho Cuaraci na pequena rede, preparando a seguir a espaçosa upaba de crautá para seu esposo dormir, fazendo-o deitar-se logo depois que terminou de comer a tão deliciosa sobremesa. ICARAI há muitas horas que não dormia e, cansado, logo adormeceu. Ela, ainda sem sono, ficou ao seu lado, olhando pela oventá (janela) de sua oca, e contemplando a amplidão onde a Divina Jaguara (Estrela Vênus, Vésper) parecia estar em noite de gala, regozijando-se com a oração silenciosa de ICARAI.

                        IRACI sentia que o liame que a prendia ao seu esposo e ao seu filho vinha de remotas eras. Quantas vezes, meditando, sentia-se transportada a outra dimensão, a lugares tão lindos e alegres, que tinham a coloração de um azul tão belo que parecia ser a atmosfera daquelas terras ozonizada... Então, reencontrava ICARAI e CUARACI e entravam em um Grande Templo, que tinha PORTAS DE OURO e uma ABÓBODA AZUL, guarnecida também com artísticos respaldos dourados. Ao fundo, velado, estava o SANTUÁRIO, com um pequeno reposteiro, também de cor azul índigo, bordado com fios de ouro. No centro da nave, sacerdotes e sacerdotisas, cujos cabelos e cútis indicavam as mais variadas raças, mas vestiam todos alvas túnicas e recebiam-nos com palavras afetuosas e abraços carinhosos. Depois, um silêncio profundo se fazia, e um só pensamento se elevava a Tupã... E IRACI via que as Portas do Templo se fechavam, não mais vendo o que se passava no seu interior. E ela despertava daquele suave torpor, voltando à sua dimensão trina. Agora, absorta, continuava ela olhando para o lampadário celeste, querendo ler na sua imensidão os seus mistérios. Ficou de pé, contemplando aquele zimbório cheio de pontos luminosos, onde a deifica Vênus era a mais majestosa e brilhante, quando de seus lábios escapou, saindo do âmago de seu coração, esta prece que, subindo ao espaço infinito, ligava à natureza naturada a natureza inata, transportando-a ao mais belo e elevado êxtase:

 

Digna-te ó Jaguara,

Filha Real de Tupã e Tupãci,

Nascida do Excelso Coração Azul...

Recebe, benévola, a prece de minh’alma,

Faze-me entrever as claridades divinas,

Tornando-me claro o caminho

Da verdade e da felicidade eterna,

Junto aos seres que me são amados.

 

Permite que no Éter se grave

As minhas palavras e pensamentos,

E que o Poderoso e Grande Espírito

Defenda todas as Terras-Brasis,

Do forasteiro aventureiro e mau,

Para que aqui não seja seu pouso.

 

Protege os Tupis descendentes,

Como todas as suas Tabas,

A Grande Nação Tupinambá,

Com Tibiriça, nosso morubixaba.

Tu, que tão clara me és neste mundo,

Escuta a minha oração que de ti fala,

Para te oferecer a crença como penhor

Da minha humilde mas pura gratidão...

 

                        E, então, como um passe de Magia Divina, os Portais das Mansão de Tupã se abriram. IRACI pode ver, então, que em seu Santuário refulgia, refletindo-se em todas as Terras-Brasis, espraiando-se ainda pelos Sete Cantos da Terra, uma Grande Kaguaba (Taça) de cor amarelo-ouro, que cintilava com grande esplendor. Gravadas à direita estavam as Seis Palmeiras do Ara-Ubixacatu (Rei do Mundo) e à esquerda estavam gravadas as Cinco Linha da Luminosa Jaguara, sendo encimada por um Triângulo circundado pelos raios de Cuaraci, havendo no centro do Triângulo o Guaçu-Essá (O Grande Olho) de Tupã, ladeado por dois Jíibas (Arco-Íris), que emitiam suas Sete Refulgentes Cores...

                        IRACI, extática, deslumbrava-se ante tanta beleza e excelsitude. Uma luz verde-azulada envolveu-a, bafejando também a seus entes queridos, que dormiam serenos. Toda a sua oca foi perfumada com o aroma da potira-íapuana (flor perfumosa)... e uma voz de timbre majestoso falou:

                        --IRACI, Eu represento Aquele que tem o conhecimento pleno e primordial. Represento também Aquele que, saindo da Essência Primordial de Tupã, no estado de consciência latente, volta em plenitude à essa mesma Essência Primordial, no estado de consciência universalmente dualizada...

                        A visão foi se apagando... apagando... até desaparecer... mas, a voz continuou ainda falando a IRACI:

                        --Bem-Aventurada sejas... Bem-Aventurado seja o seu nome, porque se perpetuará nas Terras-Brasis, como Rainha, Mãe e Sacerdotisa... És, e serás sempre, o aspecto divino daquela a quem Tupã confiará os cuidados dos Dois Apiabas (Varões, Primogênito de Deus) que descerão a Ibieté com a sua Corte, para purificá-la das ervas daninhas e, depois, entregá-la ao Senhor da Grande Jaguara (Vênus) para governá-la, trazendo a paz, o amor e a justiça; derramando em todos e em tudo a sua Essência Azul... onde frutificará a Idade de Ouro... Mas muitas luas e sóis ainda passarão, porque não é chegado o tempo... Deixo a minha paz contigo e com aqueles que são amados...

                        IRACI, muito sensibilizada, chorou baixinho, agradeceu à Divina Jaguara, louvou ao seu Deus e foi deitar-se ainda comovida. E assim, em poucos minutos, já dormia ao lado de seu companheiro, junto à pequena upaba (rede) em que seu filhinho CUARACI dormia...

 

                        III – TIBIRIÇÁ, O VIGILANTE DAS TERRAS-BRASIS

 

                        Depois que ICARAI (água boa e benfazeja) se despediu TIBIRIÇA (vigilante da terra) procurou a sua upaba (rede), mas a angústia que invadia sua alma não o deixava dormir... Levantou-se e foi sentar-se em sua patagui (esteira). Seus olhos, inquietos, circunvagando pelo interior da oca (habitação), levavam-no sempre ao uru (cesto de cipó para guardar pertences), em que estava guardado o célico e feiticeiro Maracá (estandarte) verde e amarelo. Levantando-se novamente, abriu o uru e retirou carinhosamente de seu interior o Pendão das Tabas (aldeias indígenas) das Terras-Brasis, onde habitam as araras de cor purpurina. O Grande Ubixacatu (Chefe, morubixaba, cacique) não se cansava de admirá-lo. Sem perceber mesmo, saiu com o Maracá e se dirigiu à praia. Os dois mainandares (guerreiros) que estavam de guarda na oquena (porta da oca), pelo lado de fora, ficaram preocupados com a sua saída àquelas horas tardias, a caminho da praia. E um disse ao outro:

                        --Saçu (colibri), fica mais atento na guarda que eu vou proteger o nosso morubixaba (grande chefe).

                        Mas no exato momento, passava o centurião Piatã (“pé vermelho”, com o sentido de “valente”), chefe da ronda, acompanhado de um subalterno, e, ouvindo a fala e a preocupação de seu comandado, disse-lhe:

                        --Não, Tucum (variedade de palmeira)... Não abandones o teu posto. Eu irei com Itacurubi (pedregulho).

                        Chegando à praia, TIBIRIÇÁ parou. O rumor brando dos cicios, provocado pelo balouçar das folhas dos coqueiros, plantados naquele tapete branco, mais pareciam murmúrios de vozes querendo guardar seus íntimos segredos. As ondas do mar, transformando-se em pequeninas vagas, deixavam seus rasteados de espumas e vinham, em marolas intermitentes, deitar-se nas alvinitentes areias. O Grande Chefe olhava as mboíras (missangas) de seu estandarte e alçava o seu olhar aflito às adamantinas estrelas do firmamento, parecendo querer compará-las com as do se Maracá. O Cruzeiro do Sul era mais brilhante e parecia estar mais perto da Terra. A lua, naquela noite, estava mais clara. Parecia uma esfera de prata polida, emitindo seus raios argênteos, com o maior fulgor, por toda aquela extensão. O peito de TIBIRIÇÁ arfava e as suas mão tremiam... E o Vigilante das Terras-Brasis, naquele desespero d’alma, segurou com a destra o símbolo de sua querida nação, elevou-o mais alto do que sua cabeça e fez sua voz ecoar em súplicas pelo Sete Horizontes...

                        --“Ó Tupã Todo-Poderoso!... Ó Guaçu-Ara-Ubixacatu (O Grande Monarca, o Rei do Mundo)!... Digna-te fazer brilhar a luz em minha mente e nos meus olhos, para que eu possa ver o que sinto no meu coração aflito e na minh’alma angustiada, cheia de pressentimentos...

                        Ouve a minha voz que Te chama, como a súplica de um Filho da Grande Taba Tupi (A Realeza Tupi. Os Filhos de Tupã, que habitam as Terras Escondidas), que a Ti sempre se conservou fiel e, também, aos Teus Princípios e Fins...

                        Recebe em Tua Sapiência, Amor e Justiça estas minhas palavras, para a defesa das Terras-Brasis e daqueles que nela habitam, conhecendo o Teu Nome... Defende a Nação Tupinambá e todos os seus filhos, que são também o Teu Povo!... Não deixes que retalhem a nossa Nação, nem que seja ela dispersa pelas caãs (matas, florestas)...

                        Ó Tupã, ela é o potirã (serviço, em grupo) dos meus cuidados; ela é a minha aíra (família)!... Quero-a engrandecida, como o fez SUMÉ (O MANU, o misterioso Guia e Legislador dos Tupis), que, ensinando, engrandeceu a alma do Povo Tupi...”.

                        Nestas últimas palavras, o Supremo Chefe Tupinambá falou com a voz embargada, enquanto as lágrimas corriam-lhe pelas faces, escaldantes pelo desespero... Foi quando misteriosa luz verde-azulada apareceu... e a tudo iluminou, como uma tênue neblina sobre as águas do mar... Elevando-se, aos poucos, em “boca-chiusa”, cantando em coro e capela, ouviu ele um conjunto de vozes augustinas, cheias de encanto e beleza, entoando a mais lindo sinfonia já ouvida na Face da Terra...

                        E o mar, como por encanto, desapareceu... e ele se viu em outro mundo, em outra dimensão... A Terra se abriu, mostrando em seu interior, um Palácio todo branco, com enorme cúpula servindo-lhe de teto, e circundando-o um vasto jardim com pisos azuis-dourados, e um belíssimo lago de águas azuis...

                        A medida que TIBIRIÇÁ fixava o seu olhar, o Palácio ia se aproximando, enquanto suas paredes iam desaparecendo... Então, ele viu, em seu interior, um Trono todo branco, com atavios de folhas de acanto douradas, e encimado por artístico lambrequim de ouro... Nele se assentava o Senhor do Nhuvaru-Porã (Campo Dourado e Bonito, a Terra Sagrada), o Abaré e Ara-Ubixacatu (Sacerdote e Monarca do Mundo)... TIBIRIÇÁ, arroubado naquele êxtase, ajoelhou-se. Foi quando o Grande Rei sorriu e lhe falou no clássico idioma Tupi:

                        --“Filho meu!... O amor que dedicas a estas Terras-Brasis e a todo o seu povo dignifica a tua alma e o teu espírito, enaltecendo-o em minha confiança, cada vez maior, depositada em ti. E a ti Eu faço o Meu Instrumento, o Vigilante das Terras-Brasis, Terras do Fogo Sagrado, onde habita o Sol que ilumina as densas trevas!...

                        Meu amado filho, a Lei da Evolução, tudo regride e volta ao Caos. Ela é a transformação da Vida-Energia em Vida-Consciência. É a transformação da consciência da alma em conseqüência do espírito... e seu objetivo é atritar a inteligência no homem, para que ele não fique estacionário e possa acompanhar, em si, a dinâmica da evolução. Mas é também manter a alma grupo, no reino animal, para que este evolua. É, ainda, prover a suscetibilidade dos vegetais, como também o é manter a coesão nos minerais...

                        Como vês, meu filho, todos os reinos, nessa Obra Divina, evoluem... Tudo se transforma e nada se perde! As raças, também por essa mesma Lei de Evolução, têm que se interpenetrar... e nessas interpenetrações surgem sempre os amálgamas, trazendo o aprimoramento espiritual do homem e o progresso material das coisas. Deverá haver sempre o equilíbrio do espírito e da matéria. Os homens deverão, mutuamente, se respeitar. Não deverão digladiar-se, nem deverá haver pretensão de domínio... Por outro lado, deverão os homens procurar a “Palavra Perdida”, que é o Conhecimento Divino, para se tornarem Titãs ou Porta-Vozes de Tupã! Mas tudo deverá ser espontâneo, porque se assim não o for, a “Pomba Divina” alçará vôo e fará seu ninho em outro lugar...

                        A família é, também, Obra da Divindade. E o homem repartirá seu amor com a família e Tupã. Não deverá ser fanático para que a sua mente não se obscureça e não se desvie do caminho certo. Amará e amparará sua família com integridade. Honrará a família e a Tupã por toda a eternidade, porque ela é a ponte e é indissolúvel, enquanto Ele é luz, som, cor e forma, e porque o homem foi feito à sua semelhança...

                        Tupã se dividiu em essência e se multiplicou em formas... O homem desceu do seu seio em busca de valores para a estruturação de sua consciência, que era, então, latente. E ele voltará, novamente, ao Seu seio, mas com a consciência já universalmente dualizada, em equilíbrio, tornando-se, assim, um aspecto sublime de Tupã na Terra... O homem possui o Livre-Arbítrio, mas deverá usá-lo com sabedoria e dignidade, porque se assim não o fizer, ele sofrerá os efeitos gerados pela causa... Os tempos chegaram... É a Lei! E Ela é imutável...

                        Treze é o papassaba (número) da transformação, e também o de Tupãci (A Divina Mãe). Em 13 igaraçus (navios) aportarão a estas Terras, no fim de 5 mbiracuboras (verões), forasteiros de plagas bem distantes. E como tudo volta ao seu centro de origem, eles também voltarão para fazer a fusão de suas raças com os descendentes Tupis... e, então, mais uma vez se interpenetrarão estirpes, e delas sairá a Raça Brasílica, que será forjada nas brasas do Fogo Sagrado das Terras-Brasis, para depois dela vir a Raça Dourada. Mas será naquela Raça que o teu querido Maracá, o estandarte das cores Tupis, se mostrará ao mundo com símbolo imortal das Terras-Brasis. Ei-lo!... E o Ara-Ubixcacatu e Abaré de Tupã (Monarca do Mundo e Sacerdote do Altíssimo) mostrou a TIBIRIÇÁ aquela que viria a ser... A BANDEIRA BRASILEIRA!... E, para melhor ser mostrado a todos o símbolo sagrado, fazendo-se amar e respeitar, deverá ele ser feito com ragueras (tecidos) das mesmas cores, com sua esfera azul-anil e as jacis-tatás (estrelas), e a parte externa tomando o formato das tuibaês (constelações) de Curussá (Cruzeiro do Sul) interiorizada na de Iandê (Orion). E será preso num ibirá (pau), pintado com listas Ia-que-rê (verde) e Iubá (amarelo-ouro), e tremulará sempre impávido ao vento nos iguaraçus (navios) que o levarão a todas as nações do mundo... E onde estiver este Maracá, ali também estará o seu Atapinhaçu (brasão d’armas), formado com as cinco linhas da Jaguara (a estrela de cinco pontas), e neles estarão sempre vibrando as Forças de Tupã!...

                        Aos Alienígenas não os ataquem e nem os deixem atacá-los. Eles amarão também a estas terras como as amam os Tupis e seus descendentes, porque estas foram, na verdade, as terras de sua origem longínqua, onde se consolidou o princípio quaternário na gênese humana... no início da criação da Ibi (a Terra)! O Apiaba (o Varão Primogênito e enviado de Deus), que brevemente chegará a estas terras, trará no seu Atapinhaçu (brasão d’armas) uma aangaba (figura, desenho) com vários ramos de Jetaíba (Árvore Real) com os Três Saguassumés (cabritos), conhece as Leis de Tupã e sabe o que vem fazer... Ele unirá, pela magia amorosa e vontade de Tupã, as Tabas das Terras-Brasis, que se tornarão, mais tarde, uma Nação Una e Grande. E ela será forte em tamanho e em espírito. Querer-lhe-ão dar vários nomes, mas nenhum deles se firmará... Elas são e serão as Terras-Brasis, as Terras das Brasas do Fogo Sagrado, o Aracamã (Peito do Mundo) da Terra, o seu Santuário!... Sim, o seu nome continuará a ser BRASIL... e, com  o passar do tempo, todos dirão, um dia, em uníssono:

                        “Salve Brasil!, pátria lustral!... Salve o teu Maracá, símbolo imortal dos Mundos Sublimados!...

                        Meu amado filho, defensor e vigilante destas sagradas terras, fiel filho de Tupã, a ti, a tua Nação e os teus descendentes dos sete cantos da Terra: poetas, menestréis, pintores, escultores, etc., decantarão em odes, em trovas, em cores e formas, tornando-o imortal!... Tranqüiliza-te, pois, e trabalha para Tupã. À minha paz eu voz deixo... Ave Terras-Brasis! Hosanas ao Seu Santuário!...”.

                        E a visão se foi apagando até desaparecer. O coral a capela foi enfraquecendo até não mais serem ouvidas as suas celestinas vozes... TIBIRIÇÁ era outro! Sentia-se mais firme, inspirado e elevado. A angústia, que lhe invadira a alma e oprimira seu coração, já se havia dissipado. Agradecendo a Tupã e fechando os olhos, pensou naquele Maracá que vira nas mãos do Ara-Ubixacatu do Nhuvaru-Porã (o Grande Monarca da Terra Sagrada). Levantou-se meditando, e, como que perscrutasse os Sete Horizontes, bradou com sua possante voz:

                        “Hosanas a ti, ó Terras-Brasis, porque Brasil é e será sempre o teu Sagrado Nome...”.

                        E, para surpresa sua, dos Sete Horizontes ouviu ele vozes, como se ecos fossem, que aquelas palavras confirmavam:

                        “Glorificado seja o teu Sagrado e Respeitado nome...”.

                        TIBIRIÇÁ, agora, estava confiante e sorria. Preparava-se para voltar quando avistou Piatã e Itacurubi, que caminhavam pela extensão da praia, preocupados. Quando o comandante da guarda e seu comandado avistaram o seu Supremo Chefe, ficaram surpresos, pois já haviam passado, por aquele local, várias vezes e não o haviam encontrado... Adiantaram-se e, espalmando as mãos destras com os braços inclinados para o alto, saudaram-no, ao mesmo tempo:

                        --Anauê-Apiaba-Ara-Tupã (Salve, ó Varão que traz a luz de Deus)!...

                        --Anauê-xe-iquiíra-catu (Salve meus bons irmãos)... respondeu TIBIRIÇÁ, amável e sorrindo.

                        Notando a preocupação dos comandados, TIBIRIÇÁ lhes falou da vontade que teve de, àquelas horas tardias, passear, vindo até à praia, mas voltaria com eles à sua ocara (pátio da taba), preferindo assim, silenciar sobre o que tinha acontecido.

                        Todos o estimavam e o respeitavam. Gostavam mesmo de sua presença e de dialogar com o sapiente morubixaba. Ele era amável e todos o consideravam como um verdadeiro Taitá (Pai espiritual). Chegando, afinal, à sua oca, Ele se despediu de Piatã e de Itacurubi, recolhendo-se. No canto que sua amada filha Bartira ainda dormia, guardou no uru o Maracá verde-amarelo e procurou sua upaba, pensando no que acontecera. Sorriu, fechou os olhos, e adormeceu...

 

                       

IV – SAIXÊ, O PAJÉ-CATU DOS TUPINAMBÁS

 

                        SAIXÊ (pássaro de plumagem colorida) era o Pajé-Catu (Sacerdote) dos Tupinambás. Tinha compleição forte, ombros largos, olhos grandes e penetrantes, fisionomia serena; circunspecto e cauteloso em suas decisões, era dotado de nobres e altruísticos sentimentos e muito estimado pelos de sua tribo, que o chamavam de Aíraçu (“o grande irmão”). Possuía ele um grande conhecimento das panacéias, que curavam tanto os males físicos como os da alma, pois alcançara ele um aprimorado saber sobre os poderes curativos e as afinidades das ervas e raízes, tão abundantes naquelas verdes florestas de Pacatá (Porto Seguro).

                        Muito faltava para que a divina Araci (“Mãe do dia”) viesse, com seu manto luminoso, iluminar aquelas terras de praias tão lindas, trazendo consigo Cuaraci (o Sol) para distribuir em toda a sua extensão um pouco de sua luz e calor. E o Pajé-Catu, àquela hora, já estava acordado, triturando e macerando as suas ervas e raízes com o abatif (bebida extraída da fermentação do arroz) em grandes potes de barro, para que as suas substâncias curativas se conservassem, não perdendo os seus valores. Concentrando-as assim, adquiriam elas caracteres dinâmicos, elevando ainda mais suas virtudes terapêuticas. Só então, depois de trinta sóis e luas, é que ele se filtrava nas cascas secas de guaxima. As substâncias assim filtradas eram então usadas nas manipulações de ungüentos, pomadas e, depois de dinamizadas, também para uso interno.

                        Por meio de sinais que somente ele conhecia, SAIXÊ catalogava as substâncias, guardando-as em igassabas (potes de barro) menores, arrolhando-as hermeticamente com batoques feitos com a amogável moru-totó (madeira macia), recobrindo-os depois, junto ao gargalo, com folhas de bananeiras amarradas com finos e resistentes cipós, para evitar a mínima evaporação. SAIXÊ, como um paciente observador, notara que a alcoolatura dos vegetais assim tratados tinham aumentado, em muito, os seus valores energéticos, além de se conservarem por muito mais tempo, tornando assim mais cômoda e eficiente a sua aplicação. As pomadas tinham como veículo consistente a gordura do coco babaçu, enquanto os ungüentos tinham por veículo o óleo de mamona ou de pacova (banana).

                        Mas não ficava aí a habilidade de SAIXÊ. O estimado Pajé-catu sabia também ler a Psiquê das criaturas. E, assim nessa duplicidade, ele curava o corpo e a alma daqueles que o procuravam. O título de Pajé-catu que Aíraçu (“O grande irmão”) com mérito recebeu, foi-lhe dado pelo grande Itupeva ( cachoeira de águas claras e sapientes) no simbólico chaparicó (coroa de penas) feito de penas de araras brancas e que também tinha as sagradas cores Ia-quê-rê e Iubá (verde e amarelo ouro) e que foi cingido na sua fronte pelas mãos daquele que nunca foi esquecido em sua tão querida Taba pela sabedoria, pelo amor e pela justiça demonstrados e que depois de algum tempo foi para o Nhuvaru-Porã (campo dourado bonito), deixando muita saudade em seu amado povo, e, em seu lugar, um digno e sapiente Ubixacatu (grande chefe): o amoroso, justo e valente TIBIRIÇA, o Vigilante das Terras-Brasis.

                        SAIXÊ – aquela grande alma que se concentrava em meditação freqüentemente, com o firme propósito de curar o corpo e a alma de seus semelhantes e que se dedicava com todo o gosto a tão nobre trabalho – poderia ser considerado por alguém, na posteridade, talvez como um ser intuído ou, quem sabe, um discípulo ou até um subaspecto daquele que regressou ao convívio dos homens em 1490 e que se foi em 1541, o grande alquimista e Médico, reconhecido como o Pai da Medicina Hermética: o Excelso Paracelso... Se isto é certo ou não, não o afirmarei, mas verdade é que os grandes Pensadores , os que dão seus conhecimentos à humanidade, ensinando-a a procurar a “Palavra Perdida”, trabalham sempre neste torvelinho mundanal (mesmo em regiões desconhecidas dos homens vulgares) para implantar a perfeita vivenciação da EUBIOSE! Aqueles que se mantém limpos de corpo e alma e sadios de mente são impregnados por esses pensamentos elevados. Por isso, devemos construir em nossos corações um verdadeiro altar para estes sábios pensadores; não para adorá-los (o que seria uma deturpação), mas para amá-los e respeitá-los sempre...

                        Cuaraci já se mostrava com seus raios abrasadores, quando Aíraçu, o Grande Irmão, terminava a sua lida de todos os dias, no seu humilde e singelo laboratório. UMARI (vaso de perfume e alma santa), sua dedicada esposa, sentada em um tamborete, tecia com as mais finas fibras de carauá (ou caruá). Era zelosa e gostava daquele afazer. Enquanto executava aquele trabalho manual, cantava as canções de sua tribo com sua voz harmônica e melódica. Uma delas era assim:

                                   Ó Tupãci (Divina Mãe)... Ó Tupãci!...

                                   Sonhei que fui ao teu Belo Jardim...

                                   Meu amor juntinho estava de mim,

                                   E olhávamos sutis flores aveludadas.

                                   A brisa suave sussurrava baixinho,

                                   Notas musicais compondo devagarinho,

                                   Dulcíssonas e angelicais baladas...

                                   Ó Tupãci... Ó Tupãci!...

                                   Senhora do Mundo,

                                   E de tudo o que é belo.

                                   Bendiz meu amor,

                                   Buril cinzelador

                                   Querido e sublime anelo!...

 

                                   Via-me enelada a tua realeza,

                                   Ao Reino da Natura-Beleza,

                                   Ó Céus, que magno esplendor!...

                                   Caminhávamos fascinados entre aleas,

                                      De potiras-iapuanas (flores de jasmins e

                                      azaléias

                                   Onde tudo é fragrância, paz e amor.

 

                                   Ó Tupãci... Ó Tupaci!...

                                   Senhora do Mundo,

                                   E de tudo o que é belo!...

                                   Bendiz meu amor,

                                   Buril cinzelador,

                                   Querido e sublime anelo...

 

                        UMARI não tinha percebido que SAIXÊ a observava sem ser visto, e, quando ela terminou a canção, ele, por trás, enlaçou-a, agradecendo com estas palavras:

                        --Angatu-ati-suí-xe-anga (obrigado, esposa de minh’alma)...

                        UMARI, ao primeiro contato, se assustou, mas, tão depressa reconheceu o esposo, sorriu feliz e, virando-se, perguntou-lhe:

                        --Gostaste da canção, Saixê?

                        Sorrindo, ele respondeu:

                        --Sim, minha querida... Há muito que eu te observava e ouvia. A canção é linda, como tua alma. Tua voz e tua música parecem a melodia que vem dos Mundos Sublimados. Ela me atrai... Tenho a minha mente, mas tu és o meu coração; o outro lado de minh’alma; a dinamização das coisas transcendentais. O ensino de uma emoção sublimada, a expressão do Coração Azul, para uma perene sublimação. Eu fui o navegante que perdeu o leme de sua nau, mas que depois, navegando nas Águas dos Mares Azuis, reencontrou-o.

                        Tupãci, fazendo vir dos Mundos do Ibaca (Céu) a Sua Essência, fez a nossa sagrada União Mística. Como o coração da alma tupi tem um pedaço de Tupãci, eu vôo por todo o espaço da Terra e da Amplidão, procurando ouvir que me inspira... e em todo lugar eu te encontro, acompanhando-me pelas noites do tempo, dando-me guarida, o que provém deles, ó xe-anga-cóia (ó minh’alma gêmea)!... E quem ama, tudo sente... Quem nada sente, nada sabe...

                        E SAIXÊ, aquele que tinha algumas contas do rosário de idéias de Tupã, mas que também tinha um pedaço do Coração Azul de Tupãci, fechando os olhos físicos e abrindo os de sua alma, dedicou estas singelas, mas puras estrofes, que saíram d âmago de seu coração, à sua tão querida, encantadora e boa UMARI:

 

                                    Ouvia tuas palavras, que quedava ao teu

                                      saber...

                                   Nos dias e horas de alegre lazer,

                                   Segredava-me o quanto eu quis.

 

                                   Ó alma ligada à minha...

                                   Ainda lembro quanto a mim advinha,

                                   O despertar da invulnerável Verdade...

                                   Sorristes para mim, com sorrir de criança,

                                   Pura, feliz e cheia de esperança,

                                   Orando, e me ligando à Grande Herdade...

 

                                   Ó alma ligada à minha...

                                   Prece dos Templos, tempo que se avizinha...

                                   Eu necessitava, vinha sempre a me oferecer.

                                   Em todos os lugares em que eu te procurava,

                                   Sentia tua presença, e comigo falavas,

                                   Para que eu nunca pudesse esquecer...

                                   Com o meu Ego eu reencontrei...

                                   O meu sonho, contigo realizarei,

                                   Sem entrevero de voz burburinha...

                                   Nos Templos dos tempos, ó Luz Alabastrina,

                                    És, e serás para mim, sempre a imagem

                                      divina,

                                   Ó alma, ó alma liga à minha...

 

                        UMARI, emocionada, não achou naquele momento palavras de agradecimentos para o seu companheiro. Levantou-se lentamente do tamborete, com os olhos fixos nos do seu esposo, e o abraçou chorando. Com a voz embargada pela emoção e com dificuldade, ela pôde agradecer assim:

                        --Na... ga... tu... Sa... i... xê... (obrigado, Saixê). E, de mãos dadas ela o levou para a parte interna da oca e sentou com ele na guapicaba (pequeno banco). Seu peito era como as águas de um mar agitado, e suas lágrimas rolavam pelas suas faces de tez cor de mate, indo salpicar a sua bonita araçóia (saia de penas) branca como o cambi-inajá (leite de coco).

                        SAIXÊ, sempre amoroso, esperava que aquele momento passasse. Ele era feliz ao lado de sua bem-amada UMARI. Ela, momentos depois sorrindo, falava carinhosamente, mais desembaraçada e sem chorar:

                        --Obrigada, SAIXÊ, alma de minh’alma, fanal de meu caminho. Muito e muito te quero.

                        Era costume do Pajé-catu só comer depois que terminasse o seu trabalho, e já era hora de sua refeição, quando sua esposa, com a caruaba (pequena mesa) posta, trouxe do ataupaba (fogão) vários nhães (pratos de barro esmaltado) bem quentinhos, com comandá (feijão), havati (milho), abati (arroz), jetica (batata), macaxera (mandioca), guaricurus (camarões) assados na brasa e o mbeju (pão feito de macaxera), colocando-os em cima da mesa, e indo, em seguida, apanhar sobre um jirau deliciosos favos das abelhas eirapuás e várias frutas silvestres, arrumando tudo sobre a caruaba.

                        SAIXÊ comeu bem... Já havia terminado a sua refeição quando UMARI, em uma iguaba (caneca de barro esmaltado) de taguapiranga (barro vermelho) vidrada e muito bem artesanada, trazia a bebida predileta do Pajé-Catu: a água do cambi-inajá, adoçada com o mel de abelha. Ele sorvia aquele refresco em pequenos goles, conversando com sua companheira, falando sobre o seu trabalho e acerca de suas novas experiências. Contava a UMARI que havia feito uma pupura (fervura de ervas) de ipecacuãia e a tinha deixado esfriar. Depois de fria e filtrada, diluíra nessa mesma pupura uma porção de mel de abelha, levando-a ao fogo. E notara que, em pouco tempo, essa pupura de ipecacuãia havia incorporado, sendo logo retirada do fogo para esfriar.

                        --UMARI, espero que essa pupura se conserve por muito tempo. Eu enchi duas igassabas pequenas; uma, vou guardar por trinta sóis e luas (30 dias), e a outra, vou dar aos curumins (meninos) e cunhãs-tains (meninas) que estiverem com as incômodas uus (tosse).

                        Eu tinha pedido ao Mocoripe (aquele que faz alegria) que fosse colher nas cara-ibas (carnaubeiras) a iraiti (cera). Quando ele a trouxe, deixei dentro de um nhaê-pepó (panela de barro) para derretê-la, e juntei à iraiti uma porção de óleo de pinõ (mamona). Depois de retirada do fogo, quando estava fria, juntei a água de caapomonga (erva divina) e bati essa massa bem batida. Ela ficou mais consistente, servindo melhor para ser aplicada em perebas (feridas). A iraiti poderá ser substituída pela caba de babaçu (gordura), com grande vantagem, por ser mais consistente e não se liqüefazer facilmente com o calor do corpo. E mais ainda, UMARI. A iraiti do carana-iba poderá ser usada como ibirá-iraiti (vela de cera) para iluminar, substituindo o pau resinoso que faz muita fumaça.

                        --Como SAIXÊ?

                        --É assim: corta-se a tacuara (bambu) rente aos gomos, de maneira que cada pedaço fique com um gomo fechado e o outro gomo aberto, isto é, uma canguéra (tubo. Fura-se o lado do fundo, bem no centro do gomo, para que entre bem justa a sam-mirim (cordão fino), e que a iraiti derretida não vaze por este furo. Depois de pronta a canguéra, mergulha-se na água fria e retira-se a mesma, deixando que toda água se escoe. Derrete-se a iraiti. Quando já estiver líquida, despeja-se dentro da canguéra e espera-se esfriar. Quando ficar consistente, mergulha-se novamente dentro d’água e puxa-se a ponta da sama-mirim, que a iraiti endurecida sai inteirinha e do formato interior da canguéra.

                        Depois de retirada, deixa-se ao vento para que a água que a impregnou seja absorvida. Só então é que ela poderá ser usada, queimando-se a ponta da sama-mirim que ficou descoberta. O fogo vai queimando-a lentamente junto à iraiti, até o fim. E isso leva muito mais tempo queimando e ilumina melhor. Além disso, a fumaça é quase imperceptível. Eu preparei algumas que estão secando. E quando essas ibirás-iraitis estiverem secas, eu as acenderei para mostrar a você.

                        Depois deste colóquio com sua esposa, SAIXÊ se deitou em sua upaba (rede) para descansar um pouco. Mas, fez somente uma sesta, pois uma hora depois, ainda deitado na rede, pensava nas macerações que iam ser preparadas no outro dia... E foi quando ouviu alguém que o chamava. Pensou ser UMARI, mas logo certificou-se de que não era; ela continuava a fazer o seu trabalho têxtil e cantava como era seu costume. O pajé-catu ficou intrigado. Olhou para um lado, olhou para o outro e nada viu... E aquela voz tornou a chamá-lo pelo seu nome:

                        --SAIXÊ!... Não te assuste, SAIXÊ!... Eu sei que não me vês, mas preciso falar-te! Desce até à praia, e procura uma pedra assinalada com uma curuçá (cruz), que está atrás de uma elevação... Não fales a ninguém o que se passa, até que chegue o momento. Vai só!

                        E tendo assim falado, despediu-se com esta saudação:

                        --Salve SAIXÊ, Grande Filho da Taba Tupi, contigo a Luz e a Paz de Tupã!...

                        O pajé-catu estava com os pés no chão para levantar-se de sua upaba, quando UMARI, notando que seu esposo estava acordado trouxe sorridente um pedaço do saboroso manauê (bolo de fubá de milho com coco e mel) em um pequeno nhaê e a sua iguaba cheia do refrescante cambi-inajá, adoçado com água e mel. SAIXÊ comeu e bebeu. Agradecendo à sua esposa disse:

                        --UMARI, eu vou andar um pouco para exercitar as minhas pernas e não me demoro.

                        Como era costume dar este passeio todos os dias, UMARI nada perguntou.

 

            V – A ECÓ DE TUPÃ E AS 10 PENAS DE ARARACANGA

 

                        O Pajé-catu desceu em direção à praia, que estava deserta. Subindo a indicada elevação, encontrou com facilidade a pedra assinalada com uma cruz (que ficava um pouco escondida) e esperou... Não se fez demorar, quando alguém apareceu no topo da elevação, fazendo a seguinte saudação:

                        --Louvado seja Tupã (Deus) e seu Ara-Ubixacatu (Rei do Mundo)!... Salve a Taba Tupi, que sempre se conservou fiel à Ecó (Lei) de Tupã!...

                        Assim seja, respondeu SAIXÊ respeitoso.

                        O desconhecido tinha a compleição dos Tupis, isto é, era forte, cútis bronzeada, ombros largos, olhos serenos e penetrantes, boca bem talhada, cabelos negros e luzidios caídos aos ombros e nariz levemente aduncado. Vestia um uburu (calças compridas com franjas) de cor branca, usando na cabeça um vistoso capacete formado por grandes penas verdes e amarelas. No pescoço, trazia ele um aiucara (colar), feito com lindas mboíras (missangas) brancas, verdes, amarelas e azuis, e, preso a este, um desenho formando uma cruz de estrelas, que cintilavam como se fossem verdadeiras jacistatás (estrelas), com uma quinta estrela chegado ao centro, mais à direita e quase ao sul. No centro da pala do capacete figurava uma enorme Jaguara (Estrela Vênus) da cor anilada dos céus... E, então, ele falou o seguinte ao Pajé-catu:

                        --Meu irmão, trago-te uma mensagem; e das palavras de SUMÉ (o Manu) eu faço as minhas. Falo-te bem claro e sem preâmbulos, porque assim te ensinou o teu venerando pai, o tão querido Matuetê (o excelente), que não se engana quando viu em ti um verdadeiro pajé-catu. Muita coisa que ele te ensinou foi-lhe transmitido de seus ancestrais, que foram reais seguidores de SUMÉ, o Sempre Exaltado! Portanto, o que vou te falar não é novo. É tão velho como a idade da Ibi (a Terra), desde que começou a ser formada. Quando os homens se afastam dos ensinamentos de Tupã e de seus Aibõs (profetas), começa a ser estabelecido na face da Terra um desequilíbrio em tudo e em todas as coisas. Os elementos se desencadeiam, provocando terremotos, maremotos, guerras, dilúvios, tormentas e epidemias, fazendo desaparecer civilizações inteiras. O que elas não quiseram aprender com amor, sabedoria e justiça ouvindo os seus arautos, aprenderão à custa de muitas dores, sofrimentos e muito sangue derramado... E no final de cada grande ciclo, tudo é contado, pesado e medido e passado na grande Urupema (peneira)...

                        Existe outro paraná-guaçu (oceano) do lado do reiqueaba (oeste), que banha grande ibieté (terra firme), onde seus povos são conhecidos com os nomes de: Inca, Mexicanos, Nahoas, Aztecas, Maias, Caraíbas, etc... Todos eles tiveram os seus Aibõs e Poromboessaras (Avataras), como foram Manco Capac, dos Incas, Quetzal-Coatl, dos Aztecas e Nahoas, Itzama, dos Maias, Bochica, dos Chibchas, Tamu, dos Caraíbas, etc... Todos eles, verdadeiros Tinhapiras (Guias Espirituais). Entretanto, quando eles se foram para o Nhuvaru-Porã (Campo Dourado Bonito), os homens se esqueceram deles e desprezaram os seus ensinamentos, olvidando inclusive o nome de sua cidade ou “país” de origem, que outra não é senão a famosa Tula ou Tulan, Aztlan, Maia-Pan, Manoa, Atlantis Eterna e a Cidade dos Tetos cor de Prata, onde seu Rei tem as Vestes de Ouro... E agora, os efeitos gerados pelas causas estão por vir. Suas terras serão invadidas por legiões aventureiras de outras plagas, ávidas de cobiça e insaciáveis nos seus desejos bestiais... Matarão para roubar, a tudo destruindo e a todos os povos escravizando, fazendo dos santuários seus lupanares. Estes descendentes toltecas esqueceram-se da Ecó de Tupã, como deles próprios, deixando que as suas essências fossem absorvidas pela matéria embrutecida, entregando-se todos à concupiscência, à vaidade e à maldade. Digladiam-se entre si. Nas suas pretensões de domínio, tornam-se mais indignos, cruéis e tiranos. Quando chegar o ciclo dos amálgamas, ou seja, o das interpenetrações de raças, não haverá condições para eles.

                        A Ecó, que é imutável, obedecendo à sua própria dinâmica, terá que agir e levar tudo de roldão. Haverá muito sofrimento, com verdadeiros rios de sangue que mancharão suas ocas, tabas e santuários. Estes povos sofrerão grande infortúnios que marcarão por longos tempos suas almas.

                        --SAIXÊ, isto não se dará nas Terras-Brasis, pois aqui é o Aracamã (peito do mundo). E assim é porque a Ecó de Tupã assim o quer, e ai daquele que tentar fazer destas Terras-Brasis o berço de vândalos e de prostituições... Serão também estirpados para sempre os imundos porus (antropófagos), que se banqueteiam  com os corpos de seus adversários vencidos nas guerras. Estes estão assaz bestializados e não poderão encarnar como seres humanos; encarnarão como animais e rastejarão pela terra como vermes, procurando o que eles perderam...

                        No fim dos cinco mbiracuboras (verões) que estão para chegar, aportarão em Pacatá (Porto Seguro) treze igarassus (navios). O seu chefe trará no seu atapinhaçu (brasão d’armas) vários ramos da jetaíba (árvore real) e três siguassumés (cabritos). Eles não farão mal algum, porque seu Chefe sabe o que vem fazer e não o deixará. Ficarão pouco tempo aqui nestas terras, e retornarão mais tarde, com exceção do seu Chefe, que não mais voltará porque tem afazeres em outro lugar, e neste interregno, muita coisa poderá acontecer. Confio em ti, porque saberás o que fazer...

                        Neste Uru (cesto) há Dez Penas de Araracanga (araras macau de cor purpurina). Para cada pena haverá uma missão a cumprir, e em cada missão haverá uma mensagem a ser levada e será exigido a realização de jeruressabas-mongaraibipiras (orações sagradas) a Tupã e a Tupãci... E o Mimondó (mensageiro) de Tupã entregou-as a SAIXÊ... Meu irmão, preste atenção! Cada pena terá que chegar ao seu destino e somente será entregue ao destinatário. E como não poderás empreender sozinho esta missão, porque aqui deverás permanecer, terás que tomar nove pessoas de tua inteira confiança para realizar esta divina tarefa, e que aqui deverão chegar antes de findarem os cinco mbiracuboras (verões). Tu és o Pajé-catu e tudo fica ao teu critério. As penas deverão ser entregues aos principais morubixabas (Chefes) das Terras-Brasis, todos descendentes da Taba Tupi, e que são os seguintes:

1)       TIBIRIÇÁ, aqui mesmo em Pacatá. A este, tu mesmo a entregarás;

2)       JAGUARUÇU (grande jaguar), na grande Taba do Arapuruã (umbigo do mundo), na Caá-Poanama (mato grosso, denso) em Matatu-Araracanga (habitat das araras purpurinas);

3)       ARARIGBÓIA (serpente alada), na Taba dos Temiminós (netos de Tupis), na Sicaba (fim) das Terras Escondidas;

4)       GUAÇU-JIIBA (grande arco-íris), na Taba de Cuaraci (o Sol), na Ibitira-sui-Amadiquira (Serra da Mantiqueira), que reunirá os seus Sete Pajés-catu: Ceçari (olhos que choram), Inhacundá (correntes sinuosas), Aracamã (peito do mundo), Ia-Passé (coisa destacada), Itiquirá (Águas vertentes), Tassu (mundo dos deuses) e Aiuruoca (boca que fala);

5)       MAMAMGUABE (guerreiro exímio), na Taba das Itas-Caçaras (estacada de pedras), em Paraíba;

6)       UIRÁ (pássaro), na Taba de Ipaú-Maraiu (Ilha de Marajó);

7)       TURU-AÇU (grandes fachos de fogos), em Maranhã, na Taba de Iembijéia-Jabassipabaçu (Praia dos Lençóis);

8)       MAGUARI (cegonha), na Taba dos Para-endis (o mar das luzes de fogo), nas Ibicuis-endi (areias da cor de fogo);

9)       INAJÁ-GUAÇU (coqueiro), na Taba de Nhoessembé, nas Iembijéias de Nhoessembé (praias de Ilhéus)

10)    APIABAÇU (varão primogênito), nas Iembijéias de Itaparica (anteparas de pedras), nas Ibicuis-Iubá (areias da cor de ouro).

 

          Confio em ti, meu irmão. Agora, deves partir, pois o teu morubixaba mandará, ainda hoje, que te procurem...

                        SAIXÊ quis-lhe perguntar o seu nome, mas ele, lendo a mente do Pajé-catu, sorriu e disse:

                        --Meu nome é ARA-ENDI (grande luz do fogo e do dia).

                        E a seguir, saudou SAIXÊ com a mesma saudação inicial:

                        --Que a luz e a paz de Tupã seja contigo...

                        E desapareceu, como que por encanto!... E o Grande Irmão, o que era estimado por toda a Taba Tupinambá, respondeu:

                        --E a Ti, também, ó Grande e Venerável Luz do Dia e do Fogo, que é o Teu Nome...

 

                        VI – O NHOMONGUETÁ E A ECÓ TUPINAMBÁ

 

                        Como prometera a UMARI, SAIXÊ trouxe para dentro de sua oca um ibirá-iraiti (vela de cera) que estava seco. Ateando fogo na extremidade superior da sama-mirim (cordão fino), mostrava à sua esposa, surpresa, como funcionava, quando chegou um mimondó (um mensageiro) de TIBIRIÇÁ pedindo seu comparecimento à Grande Oca do Nhomonguetá (Conselho formado pelos 7 Anciãos mais velhos da tribo com o Morubixaba, o Pajé-catu e o chefe dos guerreiros. Este Conselho é também denominado: (Karbeto) logo após Cuaraci (o Sol) se esconder no reiqueaba (oeste, poente). Entregue a mensagem, retirou-se a seguir o mimondó, fazendo a saudação costumeira. Não foi surpresa para o Pagé-catu este chamado, porquanto já havia sido avisado. Sua esposa, entretanto, ficou apreensiva, pensando tratar-se de algum ataque de tribo inimiga. Seu esposo, no entanto, acalmou-a dizendo que talvez fosse alguém precisando de medicação, de sua panacéia, pois, caso contrário, a taba já estaria em alvoroço. E assim, esse temor foi dissipado do coração da boa UMARI. Na hora marcada, o Nhomonguetá estava reunido. SAIXÊ (pássaro de lindas plumagens coloridas) e ICARAI (água boa e benfazeja) não se fizeram esperar. Na Grande Oca – local do Grande Karbeto dos Tupinambás – não faltava ninguém. O Nhomonguetá esta completo!

                        No centro do grande círculo se fazia presente o formoso Maracá (estandarte) das Terras-Brasis. Em semi0-círculo, uma grande patagui (esteira) estava estendida no chão e, em sua frente, por cima de um bem traçado quadrado de tacuara (bambu) e cipós, à semelhança de jirau, estava estendida a patagui real, o assento do nobre morubixaba (chefe da taba), ladeada por duas pequenas pataguis, onde tomavam assento: do lado direito, SAIXÊ, o Pajé-catu da Taba, e do lado esquerdo, ICARAI, o Chefe dos Maínandares ou Guerreiros Tupinambás. Na grande patagui, em frente a TIBIRIÇÁ, estavam sentados os venerandos: Moerapuana (valente e corajoso), o mais velho ancião da tribo, seguido por Upiaraçu (o grande caçador), Poacatu (aquele que tem boa pontaria), Jacumatã (estaca rija), Pitacora (o fidalgo). Os 7 Anciãos mais velhos, experientes, eram invariavelmente ouvido nas grandes decisões, pois, sem suas falas, TIBIRIÇÁ nada poderia resolver, segundo a Ecó dos Tupinambás, ou seja, a Lei dos Tupis e seus descendentes.

                        Do lado de fora da oquena (porta) da Grande Oca estavam postados de guarda vinte e dois maínandares, sob o comando de Piatã (pé vermelho, o mesmo que “valente”). TIBIRIÇÁ deu ordens para que o kiréima (serviçal) servisse o refrescante cambi-inajá (o leite de coco) com água doce e, depois de alguns instantes, abriu a reunião nestes termos:

                        --Venerandos e Veneráveis Irmãos!... O Nhomonguetá dos Tupinambás está aberto... Que a Luz, a Paz e a Inspiração do poderoso Tupã (Deus) nos dê sempre a intuição... e que o coração de Tupãci (Divina Mãe) nos leve à sublimada emoção, para podermos conduzir todos os Tupinambás a um caminho de paz, de amor, de justiça e de um trabalho profícuo e nobre. Que cada um de nós mantenha sempre fidelidade a Tupã e ao seu Abaré e Ara-Ubixacatu (Sacerdote e Monarca do Mundo) para que esta Taba seja governada com a mente e o coração...

                        Muita coisa nos foi legada por SUMÉ (o MANU) e em nossos retiros e meditações tudo foi confirmado. Sabemos que, na criatura humana tudo se resume no aprimoramento do Ixê (o Ego). Sabemos também que, por trás dele, há um “plano de ação”, que inclui um importante item que se chama: Interpenetração de Raças; e que se processa pela vontade de Tupã. Quando há promiscuidade, tornam-se desordenadas as forças de ação. Surge, então, o desequilíbrio, que leva a todos e a tudo de roldão, trazendo grandes sofrimentos. Mas, mesmo assim, a semente não deixa de ser escolhida.

                        Entretanto, quando tudo está em harmonia, alicerçado no plano de ação, o caldeamento de raças torna-se quase imperceptível, principalmente quando nele atravessamos... Ninguém é independente, porque vivemos em uma polarização, em uma comunidade. Para sobrevivermos, reunimo-nos em grupos, formando Tabas, e em Tabas juntamo-nos ao Pacatu ( o Todo, o Absoluto). Do Pacatu saímos e a Ele voltaremos, porque fomos feito à sua semelhança... Essa interpenetração de raças brevemente aqui se dará com estrangeiros de terras bem distantes...

                        Bem verdade é que a semente escolhida será a Inca-Tupi – aqueles que vivem e viverão bem junto ao Arapuã (umbigo do mundo), segundo os ditames do nosso amorável SUMÉ, o nosso Poromboessara (Avatara, Messias). Mas, queiramos ou não, temos que atravessar esta ipiranga (águas vermelhas) com nossas igaras (canoas), que são tão frágeis, com bravura e sabedoria, as quais, repito ainda, SUMÉ nos legou... No futuro, todas as Tabas das Terras-Brasis fundir-se-ão e se tornarão uma só. O meu Maracá será também um só. Terá as nossas cores e será feito de ragueras (panos, fazendas)... No seu Atapinhaçu (escudo d’armas) haverá também a nossa Brilhante Jaguara (Estrela Vênus). E par que não aconteça a nós o que certamente acontecerá nas terras vizinhas às nossas, devemos nos preparar convenientemente e organizar também as nossas poracis (danças) e jeruressabas (orações) sagradas em louvor a Tupã e à sua Divina Esposa Tupãci. Aguardo assim dos Irmãos do Nhomonguetá a palavra e o parecer de cada um dos 7 Anciãos, e bem assim o de nosso Pajé-catu e do nosso Chefe das Centúrias Tupinambás.

                        Um profundo silêncio se fez sentir na Grande Oca do Grande Conselho, e Moerapuama, o mais velho dos Anciãos, mediu suas palavras e falou:

                        --Nobre Ubixacatu (Grande Chefe)!... Veneráveis Irmãos Tupinambás!... De fato, estamos diante de um assunto assás subjetivo e profundo na sua origem, que somente com as nossas armas e a valentia dos nossos guerreiros não o resolveríamos, e nada conseguiríamos... Precisaríamos beber na Grande Iguaba (caneca) da Sabedoria e ficarmos em estado de alerta. Se nosso Supremo Chefe falou e sua fala é expontânea é porque o sente como o certo... e eu também creio ser a verdade. Por que não, uma revelação do Grande Espírito?... E na razão da minha idade e da minha experiência, eu peço licença ao Digno Morubixaba para concitar o Nobre Nhomonguetá seja este assunto resolvido entre o próprio Cacique, o sábio Pajé-catu e o valente guarini (guerreiro) ICARAI, porquanto estão eles mais afins com o problema e poderão melhor resolvê-lo. Neste caso particular, nós só os atrapalharíamos... E, dirigindo-se ao Karbeto, falou:

                        --Os dignos Anciãos permitem?

                        --Sim, Moerapuama, responderam, unânimes, os 7 Anciãos do Karbeto.

                        Moerapuama agradeceu o apoio:

                        --Angatu-xe-aussupara (obrigado, meus amigos)!...

                        Depois, dirigindo-se a SAIXÊ e ICARAI, disse:

                        --Os senhores permitem?

                        --Sim!

                        --Angatu-jara (obrigado, senhor), falou Moerapuama, dirigindo-se a cada um deles.

                        E, finalmente, dirigindo-se a TIBIRIÇÁ, fez a mesma pergunta. E o Grande Cacique respondeu:

                        --Se é a tua vontade, permitirei.

                        E Moerapuama novamente agradeceu:

                        --Angatu-jara!...

                        TIBIRIÇÁ retomou a palavra e agradeceu ao Karbeto:

                        --Meus Irmãos, Tupã falou pela boca de Moerapuama e eu me sinto sensibilizado e agradecido ao nosso Deus por termos estas tão nobres criaturas em nosso Conselho... Eu de há muito vinha preocupado, e um belo dia tudo me foi revelado...

                        E TIBIRIÇÁ contou ao Grande Karbeto tudo o que se passou com ele na praia. SAIXÊ e ICARAI, ouvindo as palavras do Ubixacatu, sentiam mais ainda a responsabilidade perante Tupã e os Tupinambás. A estas altura foi suspensa a discussão do problema, a fim de que os três encarregados de resolvê-lo retomassem o assunto na reunião a ser efetivada naquele mesmo dia, na Oca Real do “Vigilante das Terras-Brasis”. Após a citada reunião, deveriam os três convocar os 7 Anciãos para revelar-lhes o resolvido. Tudo devidamente assentado, foi, então, iniciada a Segunda parte da reunião, a qual consistiu na discussão de problemas ligados à segurança e à manutenção da Taba, sendo aprovadas, por unanimidade, diversas propostas. Entre elas, destacam-se as seguintes:

                        Moerapuama pediu o incremento da apicultura; a organização de mítimas para o plantio de ervas rasteiras; a manutenção da guarda com fogueiras acesas em todos os pontos da caiçara, em sentido circular interno; e tornar mais altas as 22 torres de vigia, com revezamento de guardas.

                        Upiraçu pediu que se controlasse a caça, para evitar a extinção das espécies.

                        Poacatu propôs a construção de grandes mundés (viveiros para peixes).

                        Jacumatã defendeu a adoção da salga do pescado e da caça, para o seu maior aproveitamento.

                        Pitacoriaçu insistiu na necessidade da construção de grandes armazéns, a fim de preservar o havati (milho) e todos os demais cereais e respectivas farinhas.

                        Moroiticara teceu considerações em torno da capissaba (lavoura)  propôs a semeadura ou plantio, em grande escala, da jetica (batata), macaxera (mandioca), comandá (feijão), abati (arroz), pacoba (banana), taioba, inajá (coco), araruta, moranga, jurumû (variedade de abóbora) e a nhumatiroba (melancia).

                        Mossacara sugeriu, quanto às bebidas, que um só grupo as fabricasse, a fim de ficar sob controle a produção e a distribuição. Propôs ainda avançar mais um pouco a caiçara circular, colocando espiões pela parte externa e superior, evitando assim a entrada de animais ferozes e nocivos, e que tivessem oquenas e também trancas.

                        E, como não houvesse nada mais a tratar, TIBIRIÇÁ encerrou a reunião, mandando que o Kireíma (servente) servisse novamente ao Karbeto o cami-inajá (leite de coco) com água doce.

 

                        VII – SAIXÊ, TIBIRIÇÁ E ICARAI

 

                        SAIXÊ, TIBIRIÇÁ e ICARAI, sentados em suas pataguis, dispostas em sentido triangular na Oca Real, procuravam resolver o assunto que teve início no Nhomonguetá (o Grande Conselho). O Cacique, com minúcias, tornava a contar ao Pajé-catu (sacerdote da tribo) e ao Chefe dos Guarinis (Guerreiros) o que se tinha passado com ele, dizendo ser uma revelação de Tupã, de seu Abaré e Ara-Ubixacatu (Sacerdote e Monarca do Mundo). Deveriam, por isso, ser organizadas jeruressabas (orações) e poracis (danças: guerreiras e de paz) para resguardar as Tabas-Brasis. Assim falou TIBIRIÇÁ. ICARAI, também, contou tudo o que lhe havia acontecido e, ainda, o que o Grande Espírito pedia: a união de toda a Taba Tupinambá, a fim de que ela pudesse atravessar a salvo aquela borrasca... SAIXÊ, da mesma forma, contou aos dois os que lhe tinha acontecido e propôs ao Cacique que deixasse a seu cargo aqueles serviços sagrados e que ficasse tranqüilo. O Cacique aquiesceu.

                        Então, o Pajé-catu passou a falar:

                        --Nobre TIBIRIÇÁ! Aqui, neste uru (cesto), há DEZ Penas de Araracanga (arara de cor púrpura). Todas elas, de acordo com o Grande Espírito, terão que ser entregues aos seus destinatários, que são os Dez Principais Morubixabas das Terras-Brasis, os quais, de acordo com o Grande Espírito, deverão obedecer às indicações nelas contidas, pois todas as penas trazem mensagens, que hão de ser mantidas em segredo. Uma pena vos está destinada, e eu vos faço a entrega. As restantes terão que ser enviadas por mimondós (mensageiros) hábeis, que levarão instruções para realizações de poracis e jeruressabas, a serem realizadas antes que se findem os cinco Mbiracuboras (verões), e nos dias de jacissema (Lua Nova). Estes mimondós deverão chegar com a maior presteza, a fim de que todas as Tabas-Brasis possam fazer as suas litanias nas mesmas ocasiões.

                        --Agora, Senhor, eu peço autorização para enviar os mensageiros e providenciar o início dos cerimoniais.

                        --Autorizo, SAIXÊ! E, olhando para o Chefe dos Guarinis, perguntou: que dizes, ICARAI?

                        --Concordo, Senhor!

                        E o Pajé-catu solicitou ajuda a ICARAI e a TIBIRIÇÁ, para a indicação dos nove mimondós, que tinham que ser da maior confiança, fortes, resistentes, ligeiros e conhecedores dos difíceis caminhos a serem percorridos a pé através de matas e montanhas, e, ainda, tinham que ser capazes de construir balsas para navegar por rios e pelo paranã-guaçu (oceano). E, assim, foram indicados os seguintes mensageiros: Cuabapuama (o veloz corredor), Itaipu (pedra do monte), Tangará (pássaro irrequieto), Ataraçu (o grande caminhante), Ecoeté (o corajoso), Apuama ( o ligeiro), Pissaguaçu (o grande pescador), Apecatu (aquele que vai longe) e Guaçu-cassaba (a grande cunha). Depois de indicados e aprovados todos os mensageiros, o Pajé-catu dirigiu-se ao Chefe dos Guarinis:

                        --Amanhã é dia de jacissema e é preciso que todos tomem parte na Grande Ladainha. Eu te peço que me mande os mimondós escolhidos muito antes de jeruressaba e da poraci se iniciarem, para que os mesmos estejam bem orientados e preparados para as viagens que eles empreenderão.

                        --Mandarei, retrucou ICARAI.

                        --Angatu (obrigado), replicou SAIXÊ.

                        TIBIRIÇÁ, muito contente, abraçou-o...

 

                       

A CHEGADA DOS MIMONDÓS NA OCA DE SAIXÊ

 

                        Pouco faltava para que o horizonte leste se iluminasse e a luz do sol se espraiasse pelos quatro cantos das Terras-Brasis... Os guarinis, de sentinela nas 22 torres-vigias, faziam soar em cada torre suas inúbias (buzinas de sopro), dando tudo como estando calmo e sem anormalidade. Os sentinelas volantes, emitindo o pio de caburés, passavam de um posto para outro, trocando suas senhas de serviço e percorrendo, por inteiro, a ocara (pátio da Taba) junto à grande circular caiçara, onde, de espaço a espaço, e bem distantes uma da outra, ardiam fogueiras, que, no seu total, somavam vinte e duas...

                        SAIXÊ já se achava de pé. Parte de sua oca era iluminada com as luzes de suas ibira-iraitis (vela de cera). Ele trabalhava em seu humilde laboratório, preparando as poções para os seus inúmeros doentes, que não demorariam em vir procurá-lo, a menos que não pudessem se locomover, quando, então, mandariam seus parentes, que, por certo, receberiam instruções do Pajé-catu sobre a maneira de ministrar os remédios... Assim, quando a manhã já se tornara bem clara e cheia de luz, começaram a aparecer os seus pacientes e os portadores de poções. Eles aguardavam em uma pérgula bem ramada de folhas e frutos do maracujá, que ficava quase encostada à sua oca. À medida que iam chegando com seus iguaburus (copos de barro), SAIXÊ os despachava. E assim, até que a última poção fosse entregue. Terminada esta tarefa, o Pajé-catu começou a guardar os vasilhames, repondo-os em cima do jirau que servia de prateleira, para ficarem em segurança e em ordem, quando Umari (vaso de perfume) veio avisá-lo de que vários guerreiros o procuravam. Eram os mimondós que se apresentavam a mando de ICARAI, e que desde aquele momento ficavam à sua disposição

                        SAIXÊ recebeu-os sorridente. Levou-os para a pérgula e, sentando-se com eles no chão, assim falou:

                        --Nobres Guarinis! Tupã incumbiu a Nação Tupinambá de realizar determinadas coisas, que, segundo a sua vontade, deverão ser executadas com presteza. Os guararás (tambores) poderiam emitir suas mensagens, mas Tupã exigiu segredo, porque tais coisas, se conhecida por todos, perderiam a sua finalidade. Por isso existem 10 Pepós (penas) de Araracanga que servem de credenciais e contém as mensagens e confirmam os seus objetivos. Elas deverão ser entregues aos seus destinatários nos vários lugares onde se acham, e que, na maioria dos casos, são bem distantes. Uma já foi entregue por mim ao nosso morubixaba TIBIRIÇÁ. Na reunião do Nhomonguetá vocês foram os escolhidos para entregar as outras nove, por terem sido considerados homens capazes e de confiança para a realização desta tarefa. Eu também confio em todos vocês e na sua discrição, coragem, resistência para marchas forçadas e na ligeireza de seus passos. Vocês terão que evitar passar por tabas inimigas, fazendo sempre mais curto os seus caminhos, porque estas pepós não deverão cair em mãos inimigas. Desde cedo aprendemos a conhecer os descendentes Tupis (Filhos de Tupã). O poru (antropófago) se diz descendente, mas não é. Ele é um renegado e comedor de carne humana.

                        Antes da saída de vocês, haverá uma grande jeruressaba em que todo o povo Tupinambá tomará parte, inclusive vocês. Estas Pepós de Araracanga – SAIXÊ mostrou-se – ficarão, durante todo o cerimonial Tupi, em cima do Santuário. Quando terminar esta litania, cada um de vocês retirará a sua pepó e voltará aqui, a este lugar, para receber cada um a sua popessama (bornal) de viagem, com remédios e comida, sendo que esta última dará para três dias, e uma cabaça de água. E, coo vocês aprenderam, terão que, quando acabar estas provisões, procurar outras pelos caminhos em que passarem. Agora, prestem atenção!

                        Tu, Cuabapuama, entregarás a tua pena ao valente Jaguaraçu (grande jaguar) na Taba de Arapuruã (umbigo do mundo), em Caá-Poanama (mato grosso), em Matatu-Araracanga (onde moram as araras purpurinas).

                        Tu, Apuama, entregarás a tua pena, na Taba dos Temiminós (netos dos Tupis), na Sicaba (fim) das Terras Escondidas ao valente Chefe Ararigbóia (serpente alada).

                        Tu, Tangará, entregarás a tua pena ao nobre Guaçu-Jiíba (grande arco-íris), na Ibitira-sui-Amandiquira (Serra da Mantiqueira), na Taba de Cuaraci, que reunirá os seus Sete Pajés-catu com os nomes de Ceçari (olhos que choram), Aracamã (peito do mundo), Inhacundá (corrente sinuosa), Ia-Passé (coisa separada), Tassu (mundo dos Deuses), Itiquirá (águas vertentes) e o eloqüente Aiuruoca (boca que fala), para com eles cumprir os desígnios de Tupã.

                        Ecoeté, tu entregarás a tua pena ao bravo Mamanguabe (guerreiros exímios), na Taba dos Ita-Caiçaras (estacas de pedras), em Par-aíba (mar agitado).

                        Pissaguaçu, entregarás ao nobre Aracati (bom vento) na Taba de Turu-Açu (grandes fachos de fogos), em Maranhã (lugar onde se faz a guerra), na Iembijéia-jobassipabaçu (Praia dos Lençóis), a tua pena de araracanga.

                        Apecatu (aquele que vai longe), entregarás a tua pena ao nobre Maguari (cegonha), na Taba dos Para-endis (mar de luzes de fogo), na Ibicai-endi (areias de luzes de fogo).

                        Ataraçu (grande caminhante), tu entregarás a tua pena ao poderoso Inajá-Guaçu (coqueiro), na Taba de Nhoessembé (hoje Ilhéus), na Iembijéia-Karina (praia branca).

                        Itapiru, tu entregarás a tua pepó de araracanga na Taba de Ipau-Maraiu (Ilha de Marajó) ao Grande Uirá (pássaro).

                        E, finalmente, tu, Guaçucassaba, entregarás a tua pepó de Araracanga ao sapiente Apiabaçu (varão primogênito), na Taba de Itaparica (anteparas de pedras), na Iembijéia das Ibicuis-Iubá (areais cor de ouro).

                        Como vêem, nobres guerreiros, todas estas Tabas-Brasis são descendentes diretas da Taba Tupi, aquela que vive no pupê de Arapuruá (interior do umbigo do mundo) e nos legou o Verde-Amarelo do seu Divino Maracá (estandarte). Vocês deverão falar a estes Caciques o seguinte:

                        --Que a Taba Tupinambá – seus Irmãos – foi orientada pela Voz do Grande Espírito, que falou e apareceu ao seu Morubixaba, ao seu Pajé-catu e ao seu Grande Guarini ICARAI. Que todo o Povo da Tabas-Brasis deverão fazer sempre, nos dias de Jaci-peçassu, as Grandes Ladainhas em louvor a Tupã e a Tupãci (Supremo Deus e Divina Mãe), a fim de conjurar um mal que poderá surgir dentro destas terras pelo lado do reiqueaba (oeste. Comuniquem a eles também que foram entregues às diversas Tabas penas idênticas, e que estas penas de araracanga deverão estar sempre nos Santuários de cada Taba por ocasião das litanias, não para adorá-las, mas sim como símbolo de mensagem. Digam ainda que seus Pajés-catus deverão iniciar as Ladainhas quando Cuaraci (o Sol) estiver bem alto, por cima da Terra, sem fazer sombras e, aí, deverão invocar nosso Deus e todo o seu poder, conjurando este perigo para sempre. Todos deverão ser sempre fiéis a Tupã, e quanto aos brutos, serão eles banidos para sempre e repudiados. Deverão estar todos conscientes de que destas cerimônias dependerão o nosso sucesso.

                        É necessário ainda avisar a eles que se virem entrar nas suas águas treze igaraçus (navios), sob a chefia de alguém que traga em seu atapinhaçu (brasão d’armas) os ramos de jetaíba (árvore real) e três siguassumês (cabritos), não deverão atacá-los. Eles não farão mal algum, porque vêm a mando de Tupã – o Uno e Poderoso Deus dos Tupis. E, para finalizar, deverão ser alimentadas, todas as noites, Sete Fogueiras, que arderão até que Araci (Mãe do Dia) chegar... Todos vocês deverão se esforçar para que este objetivo seja atingido, e voltar com a máxima presteza, muito antes de terminar os cinco Mbiracuboras. Agora, vocês devem se despedir de seus familiares. E que estejam prontos para a cerimônia na hora marcada. Podem ir e leve cada um a sua pepó de araracanga guardada em seu uru, a fim de resguardá-la...

                        SAIXÊ entrou em sua oca, apanhou nove popessamas feitas com sama-mirim (cordão fino) e crautá (bromélia vulgar), e 27 canguéras (tubos de bambu) de tacuara, vazia, e que foram cheias da seguinte maneira: 9 canguéras com tintura de jurupicanga (alcoolatura de casca de quina); 9 com tintura de ipecacuãia; 9 com tintura de marabá, ou seja, uma mistura de tinturas para combater qualquer maraára (doença); 9 coités; 9 cabaças com alças a tiracolo para transportar água; e nove sacos de farinha de mandioca, contendo moqueadas; e mais comandá (feijão), jurumû (variedades de abóbora), jetica (batata) e soó (carne de caça). Depois de tudo arrumado, o Pajé-catu veio para a oquena (porta) de sua oca e procurou sentir se faltava alguma coisa. Mas não, tudo estava em ordem! Nada faltava para um viageiro que fosse cumprir aquela jornada e tivesse a experiência de como se suprir pelos caminhos em que passasse.

                        SAIXÊ, sereno, contemplava o céu azulado daquele Pacatá (Porto Seguro) tão poético, ao qual, um dia, viria aportar os três Igarassus... A Senhora das Águas Azuis traria em seu Itinerário um de seus filhos – o Filho Mariz... voltando à terra de Origem e firmando a Vontade do Pacatu (o Todo), manifestada no Grande Abaré de Tupã (Sacerdote de Deus) e Ara-Ubixacatu (Monarca do Mundo), para que nas Terras-Brasis não fosse derramado o sangue precioso de seus filhos pelas mãos daqueles concupiscentes invasores, ávidos de cobiça, os quais, anos mais tarde, transformariam as Sagradas Terras Incas em ruínas e em verdadeiros rios de sangue, fazendo escravos os Filhos do Sol, que, apesar das grandes dores, dariam um dia a semente que se fundiria com os Filhos de Tupã, a fim de que delas surja a Raça Dourada, quando de novo rebrilhasse a Capiaba-Ipuéra (Quinta Essência)...

                        E a doce Umari, o Uirapuru (o pássaro sagrado dos Tupis) Tupinambá, aquela que possuíra um pedaço do Coração de Tupãci e a cabeleira verde das Iaras (habitantes das águas dos rios), juntamente com a meiga Iraci (doce mãe), a menina-moça Bartira e a amorosa Paraguaçu (grande mar), plasmariam a alma da Raça Brasílica. Fiando na sua inimboíba (roca) o Uirapuru Tupinambá cantava baixinho esta Maanduba (história), como se tivesse a visão do futuro das Terras-Brasis:

 

Ó gigante que desperta plácido...

Com a chegada do tempo beneplácito.

determinou...

Faze sentir em teus filhos o despertar da vida,

A união, o amor, a esperança mais querida,

O advento feliz que o Pacatu (o Todo) idealizou...

 

Faze sentir pelas tuas entranhas,

Que não há vulgo ou pessoas estranhas,

Que no teu seio houvesse nascido.

Faze rufar em surdina os teus tambores,

E soar de teus clarins sejam clamores,

Para que teu povo seja reconhecido.

 

Faze sentir ao homem, respeito ao teu Maracá,

Real, formoso, qual Divino Manacá,

Pelas cores simbólicas com que se expressa.

Faze sentir a todos, deferência a esta Terra,

Por tudo e pelo valor que ela encerra,

E o porvir do ciclo que se apressa...

 

Faze sentir ao mundo, que és o Altar da Esperança,

E que a idéia do homem renasce na criança,

Sendo elevada na mais bela e sublime Pastoral...

Faze sentir a todos que o Maracá Estrelado,

Se afiniza pelas cores, sons, e é exaltado,

Pelo perfume do Grande e Oculto Missal...

 

Ó Terras-Brasis, amálgama de gerações,

Alcatifada de idéias e nobres corações,

Que está cumprindo a Divina Missão!...

É Etama de Tupã (Pátria de Deus), reinado de ventura

                   Ó Terra-Prometida da Quinta Estrutura!...

                   A Ti eu faço esta sincera oração:

 

                 Salve tuas prerrogativas divinas,

                 Que trouxe revelações sibilinas,

                 Vibrando acordes para uma Nova Canção...

                  Glória a ti, ó Mãe-Pátria-Lustral predestinada,

                  Liame sublimado para a Raça Dourada...

                 Abre-nos as Portas de Ouro do Teu Coração!...

 

                        SAIXÊ contemplava, embevecido, a sua terna e doce companheira, que tinha a voz tão bonita e cheia de modulações, e que, naquele momento, terminava a última estrofe de sua Poranduba (história). O Pajé-catu notou que Umari se levantara do tamborete onde estava sentada, fiando, e que as suas faces estavam cheias de luz. Ela, olhando-o fixamente, falou:

                        --Que a luz e a paz de Tupã estejam em teu lar, ó Pássaro de Lindas Plumagens Coloridas... eu te saúdo a ti e à tua doce e amada Anga-Cóia (alma gêmea). Anauê (salve) o Divino Arapurã (umbigo do mundo)!...

                        O Sacerdote da Taba Tupinambá, emocionado e com os olhos marejados de lágrimas, correspondeu assim:

                        Ó glorioso Poromboessara (Avatara), Filho dos Mundos Sublimados de Tupã, Luz de ara-Endi (luzerna cor de fogo), Arauto da Ibi (Terra), que tem o Piá-Endi (coração ígneo). Eu e minha Alma gêmea te saudamos com estima e respeito!.

                        E o Filho da Taba Tupinambá, exultante de alegria, abraçou sua esposa, exaltando-a:

                        --Bendita sejas, agora e por todos os tempos, ó Sagrado Vaso das Águas Perfumadas!... Que a tua alma inspire a alma do povo destas Terras tão Puras e Amorosas, que se chamarão BRASIL! Que sejas, pois, a Musa Inspiradora da Raça Brasílica, que há de vir e que há de decantá-la e enlevá-la na sua consagração, junto ao Grande Abaré de Tupã e Ara-Ubixacatu (Sacerdote do Altíssimo e Monarca do Mundo)... Feliz sou eu por ser teu companheiro e haver nascido nestas Terras-Brasis, o Aracamã (peito do mundo) dos Mundos manifestados, e que guarda em seu âmago os preciosíssimos Vasos das Sublimadas Essências e as Brasas do Fogo Sagrado... Sim, minha amorosa e meiga Umari, Auê... Auê... ao Divino Arapuruã!... Glória ao Divino Poromboessara!...

 

                       

 

 

VIII – A GRANDE JERURESSABA (ORAÇÃO)

 

                        Numa clareira, onde desciam as águas do Buranhém (rio das águas falantes), toda a Nação Tupinambá estava reunida para a Grande Jeruressaba (oração). Na circular-caiçara, com sua grande oquena (porta da oca) de trancas e as 22 torres defensivas, já se notava vestígios de obras bem adiantadas.

                        No centro do grande círculo, numa elevação estava o santuário Solar Tupi; uma grande pedra em forma cúbica, sobre a qual havia uma grande Kaguaba (taça) cheia de águas daquele rio, o rio das Águas Falantes.

                        Em linha paralelas, estavam acesos sete pares de Ibiram-iraitis (pau de cera). No centro das linhas, via-se a grande e brilhante Jaguara (estrela Vênus, vesper) na cor azul índigo dos Tupis. Em frente ao Santuário, a linda e inocente cunhã-mucu (menina-moça, sacerdotisa) Bartira, tendo à sua direita Umari (vaso de perfume) e à sua esquerda Iraci (doce mãe), queimava o apuã-gatu (incenso) num incensório artístico, esculpido em desenhos nativos, que se dividia em duas partes: uma pousada no chão em forma de tripé e a outra sobreposta, semelhante a uma grande obá com alças, talhada com uma serpente alada.

                        Tibiriçá (vigilante da terra), com seu cocar (capacete de penas) verde e amarelo, estava ladeado à direita pelo Pajé-catu Saixê (Sacerdote da Taba) e à esquerda pelo Guarani (Guerreiro) e Icarai (água benfazeja, esperava ansioso o início da Litania. Mais à frente, estavam também, em linhas paralelas, os Sete Anciãos do Nhomonguetá (conselho dos mais velhos da tribo) com suas esposas, e, para finalizar, 3 círculos concêntricos, conforme costume tupi.

                        O primeiro círculo de dentro para fora era formado pelos curumins (meninos) e cunhãs-tains (meninas); o segundo, pelas cunhãs (mulheres casadas e solteiras); e o terceiro, pelos guerreiros e artífices com suas lanças, arcos e flechas, jisuaras (machados), tacapes, propriás (punhais), azuguaias (pequenas lanças) etc.

                        Saixê convocou nove mimondós (mensageiros) e cada um depositou a sua pena de Araracanga sobre o Santuário, permanecendo em fileira entre as sacerdotisas e o Santuário. O Morubixaba (cacique) achando o momento oportuno, ordena ao Pajé-catu iniciar os cerimoniais, falando:

                        “Eu, em nome de Tupã (Deus) e de Tupãci (divina esposa), faço iniciar a Grande Jeruressaba, em seu louvor.”

                        Fez-se profundo silêncio e Saixê, elevando os olhos e os braços para o alto, dirige ao seu Deus esta jaculatória, pedindo que todos o acompanhasse.

                        “Digna-te, Ó Uno, Onipotente, Onisciente Tupã a fazer de nós o instrumento do teu amor, da tua justiça, da tua paz e vontade, para continuarmos sendo o teu povo eleito.

                        Permite aos Tupis e aos seus descendentes beberem, na grande Kaguaba, a água do rio sagrado, que estará pleno da tua essência e que emanará profunda sabedoria, quando for dada a beber. Permite que nosso Morubixaba seja o portador da tua luz e sapiência, para comandar sempre a Nação Tupinambá (descendente dos tupis) com justiça, amor e eqüidade.

                        Digna-te também, Ó Tupã, a defender as tuas terras-brasis e sejamos inspirados pelo Grande Espírito das terras escondidas... Que o teu povo possa ver e sentir a luz brilhante da divina Jaguara e fazer de sua luz um caminho e um poderoso guaracapá (escudo), para afastar o perigo de sermos envolvidos pelos conquistadores e espoliadores do teu Nome. Nós, os teus filhos, Te honramos e saudamos por todo o sempre, pela tua glória na Etama (pátria), no Ipió (infinito) e na Isi (terra)...”

                        Saixê exalta os grandes espíritos da corte de Tupã:

                        --Nós te saudamos, Ó Divino Barqueiro, com teu Morotim (barco que leva o Maracá considerado sagrado) alado que navega no grande rio das águas que falam, onde se banham as Iaras (habitantes dos rios) das cabeleiras verdes, filhas da divina Tupãci...

                        --A Ti elevamos o nosso pensamento para exaltarmos, Ó indomável Barqueiro, e também as tuas águas das cores ígneas...

                        --Pela glória de Tupã, nós, os da Nação Tupinambá, damos hosanas a Ti, Ó grande e amoroso Barqueiro, que navega com o seu Morotim flamejante.

                        --Amauê... Amauê... (Salve), Ó Majestoso e Divino Barqueiro, que navega o rio sagrado do Ibaca e que tem as águas da cor do repousante moribi (azul)...

                        --E a Ti também glorificamos, Ó sublime e grande espírito que anima e vivifica a nossa raça. Porque somos a tua sabedoria, a tua estirpe, a Jaguarina, de onde nascerá a raça brasílica, para depois vir muito mais tarde a Dourada, que engrandecerá mais estas terras-brasis, as terras do Fogo Sagrado na face da Ibi...

                        E o Pajé-catu continuou...

                        Diferentes princípios da natureza,

                                   Começo do Tupixuara (Grande Espírito) inata pureza,

                                   Grande Guaraci (Sol) que desprende energia,

                                   Força síntese e delicado prisma,

                                   Fonte policroma das Sete Crismas,

                                   Pacatu acústico da polifonia.

 

                                   Dinâmica Universal emanada,

                                   Que cria e é incondicionada,

                                   Firmando a vida no primeiro aspecto.

                                   Como se fora enorme fagulha,

                                   Reluz, saltita e mergulha,

                                   Para objetivar o seu intelecto.

 

                                   Áurea prístina de Tupã

                                   Mbaeaçu (Grande Espírito) e substância Louçã,

                                   Força geradora e matéria.

                                   Primogênito do Sangue Azul,

                                   Saindo do Cruzeiro do Sul,

                                   Como sutil sonoridade etérea.

 

                                   Cor Índiga dos Caraí-bebês (arcanjos),

                                   Éter sonoro que enleva,

                                   O homem ao mental superior.

                                   Ele, nas águas do Ibaca, é banhado,

                                   Na sua espuma purificado,

                                   Positivando o externo e o interior.

 

                                   No passeio que o ibitu (ventos) veio dar,

                                   A dinâmica do gênio do ar,

                                   Firmou a sua direção norte.

                                   Pintou de verde um símbolo, e a natura,

                                   Confiando a Jaci-ai-que-re (saturno) a sua sorte.

 

                                   A cuatiara (desenho) piranga (vermelho) fulgurante,

                                   E o planeta da mesma cor rutilante,

                                   Fraternos se afinizam a bel-grado.

                                   O perfume da potira (flor) em seu redor,

                                   E a sonância acórdica do Ipio,

                                   Juntam-se e fundem-se ao Fogo Sagrado.

 

                                   As águas saúdam Jaci (lua)

                                   E toda a sua força perpetua,

                                   Na cor do horizonte leste.

                                               As iaras em cantos dolentes

                                   Felizes ostentam o lunar-crescente,

                                   E louvam a Divina Mãe Celeste.

 

                                   Na cor alaranjada,

                                   Gênios tingem um quadrado,

                                   Reverenciam Aguassaiçu (Grande Espírito), o Deus do Sol.

                                   Renda de ouro ornamentam a Terra,

                                   Desde as planícies às mais altas serras,

                                   Nobilitando o homem ao título reinol...

 

                        Saixê com os braços ainda para o alto; Ó Mbaeaçu, Águassaiçu, Guajupiaçu e Tupixmaçu, que é um só o Teu Nome!...

                        --Faze descer na Sagrada Kaguaba a tua essência, para bebermos nela a água da vida e nunca mais sentirmos sede...

                        E naquele momento toda a Nação Tupinambá viu descer dos céus grande facho de luz e saturar as águas da Grande Kaguaba, que ao mesmo tempo expandindo-se banhava tudo e a todos, com a sua luz verde azulada... Os descendentes Tupis exaltavam de alegria e aí Tibiriçá saudava a grande Taça Tupinambá e a Sagrada Jaguara, com o braço direito inclinado para o alto. Cerimonioso, alçou-a e levou-a aos seus lábios, bebendo um pouco da sua água e dando de beber logo após a Saixê, Icarai e às Três Sacerdotisas Umari, Bartira e Iraci, aos Anciãos e as suas cunhãs, aos Nove Mimondós, e assim foi até ao último componente daquele cerimonial, consagrado ao Todo Poderoso Tupã e a sua corte.

                        O Pajé-catu chamou os mimondós e ordenou que cada um retirasse do Santuário as suas penas de araracanga e saudassem a Grande Kaguaba e a Divina Jaguara.

                        Sendo retiradas as penas, cada um voltou aos seus lugares. Saixê falou aos Tupinambás:

                        --Xe-Aíre-catu (meus bons irmãos):

                        É pela vontade de Tupã e para bem de toda a Nação Tupinambá, que o nosso sapiente Cacique quer que se faça todos os dias de jaci-peçaçu (lua nova), e a esta mesma hora, a Grande Jeruressaba dedicada a Tupã e a sua Esposa Tupãci.

                        Dirigindo-se a Tibiriçá, solicitou que encerrasse as Litanias Sagradas, que assim falou:

                        --Em nome da Etama de Tupã, do seu Abaré e Ara-Ubixacatu (sacerdote e monarca do mundo), dou por terminada a Jeruressaba-Mongaraibipira (grande oração sagrada).

                        Oro-moeté-Ara-Tupã-Xabaius (nós te saudamos, Ó luz de Tupã, como também ungidos)... Aos poucos e em silêncio, todos se iam retirando daquele vasto Templo Solar de Tupã, em que o vasto teto era o manto azul do infinito, e a luz que o iluminava era a do Astro-Rei, engastado no zimbório do infinito, que nos momentos da jeruressaba emitia verticalmente os seus raios dourados, no tão verde, belo, puro, majestoso e mui leal Pacatá (Porto Seguro).

                        Saixê dirigiu-se a Tibiriçá e comunicou a necessidade incontinente da partida dos mimondós. O Morubixaba autorizou-a, desejando a cada um bom sucesso na empreitada e uma boa viagem, animando-os nas suas missões.

                        O Pajé-catu agradece pelos mensageiros. Pede licença, fazendo a saudação nativa e retira-se com os mimondós para a sua oca (casa, habitação do índio brasileiro).

 

                        IX – A PARTIDA DOS MIMONDÓS (Mensageiros)

 

                        Umari (de inspiração superior, esposa do sacerdote) sabedora dos cuidados do seu esposo à partida dos emissários, tinha assado no seu ataupaba (fogão) um apetitoso manauê (bolo de fubá com mel de abelha) e, antes que eles partissem para as missões previstas, ela servia junto com refrescante cambi-inajá (leite de coco) com água doce. Terminada a pequena refeição, Saixê (sacerdote) trouxe as nove popessamas (cesta para mantimentos) e as nove cabaças d’água, dizendo:

                        --Há aqui em cada popessama, uma canguera (tubo de bambu com rolha) de jurupicanga (bebida fermentada de quina com arroz), remédio que serve para combater qualquer aeanunduca (febre). Uma canguera de ipecacuanha, que combate a rebelde uu (tosse). Uma canguera de tintura de marabá (mistura) que serve para curar marara (qualquer doença). Comida. Um coité e ainda esta cabaça d’água.

                        Recebendo cada um os seus petrechos de viagem, depositaram com todo carinho as penas de araracanga nos seus urus (cesto de cipó), guardando-os nas popessamas. E aguardaram a palavra de Saixê.

                        O Pajé-catu (sacerdote da taba), para saber se as instruções dadas anteriormente foram guardadas, perguntou:

                        --Cuabapuama (o veloz corredor), qual o seu roteiro e objetivo?

                        O emissário respondeu a Saixê o roteiro e o objetivo da sua missão, como também as instruções recebidas neste sentido. E os demais interrogados lhe responderam fielmente as instruções recebidas.

                        Quando os Mannandares (guerreiros) se despediam do sacerdote Tupinambá (descendentes de tupis), Umari, sempre cortês, apareceu com nove pedaços de manuê embrulhados em folhas de pacoba (de bananeira), oferecendo a cada mimondó um pedaço para levar e comer durante a viagem, no que ficaram agradecidos.

                        Então, despedindo-se um dos outros, cada qual tomou o seu rumo, caminhando sob o sol abrasador.

                        O Pajé-catu com sua esposa esperavam na oquena (porta) da sua oca, até que o último guerreiro desaparecesse embrenhando-se na grande caa (floresta).

 

Bartira chorou...

 

                        O sol começava a se esconder deste imenso continente. O céu azul, límpido e claro, era tingido agora no seu vasto horizonte por matiz diverso que fazia deslumbrar o ser humano, levando-o a amar com todo carinho àquele (porto seguro) tão divino das terras brasis.

                        Com os seus cabelos caindo aos ombros, com uma pena verde e a outra amarela presas na fronte por uma tiara branca e azul, um aiucara (colar) de mboíras (missangas) azuis e brancas no delicado colo, vestindo uma aracóia (saia de penas) de penas brancas como uma verdadeira princesa Tupinambá, filha legítima da Grande Taba Tupi (realiza Tupi), Bartira, a bela cunhã-mucu (moça donzela), filha do Morubixaba Tibiriçá (Grande Cacique), sentada numa grande pedra elevada, fronteira ao mar, contemplava de maneira tão mística o misterioso oceano, que as pequeninas marolas vinham, de mansinho como um sussurro, beijar as areias brancas da praia e que, em suave marulho, parecia conversar com ela. Sim, o mar a fascinava... Era como se ela estivesse mais perto de Tupãci (mãe divina, esposa de Tupã)... Baixinho ela docemente perguntava:

                        --O que haverá debaixo das tuas águas Ó Paranã-guaçu (Grande Mar)? Conta a tua poranduba (histórias, contos poéticos); ou permite a alguém que em ti habita a decantar para mim os teus feitos de lutas e glórias...

                        Neste instante, Bartira ouvia um tropel de cavalos que vinha do mar para fora, deixando-a muito assustada, pois ela ainda não conhecia aquele animal.

                        Seu cavaleiro tinha a pele bronzeada. No seu capacete de penas trazia as cores Tupis e no seu aiucara, o azul reluzente a Jaguara (Estrela Vênus).

                        Acalmando-a disse:

                        --Não te assustes Ó Nobre Princesa Tupinambá, digna filha de Tupãci; a Mãe, Rainha e Sacerdotisa do Mossapir-Ara (os três mundos)... Contigo a paz e a glória de Tupã e Tupãci!

                        E continuou:

                        --Bendita sejas, como também a meiga Paraguaçu (grande mar) de Itaparica (anteparo de pedras), porque serão as flores da maternidade, nas Sagradas Terras Brasis, que levarão a fundir a raça ibérica com a tupi. E...

                        --Será feita a tua vontade. Contar-te-ei a poranduba deste Paranã-guaçu, que na verdade tem o nome em outras terras de “Atlântico”, em homenagem a Grande Mãe que desapareceu há muitas luas e sóis, porque os seus habitantes não quiseram ouvir a fala do Grande Espírito transmitida pelo Poromboessara (messias, grande profeta). Esta Poranduba tem o nome de águas que choram, soluçam!...

                        Ela é assim:

 

                        Foi numa tarde quando começava a se matizar,

                        Eu caminhava sozinho, junto à murada do mar,

                        Os bramidos das ondas eram lamentos; endechas sem fim.

                        Eram cantigas dolentes, que tangiam na alma,

                        Reclamos doridos sem lenitivos que acalma,

                        Eu parava e perguntava, falando à águas assim:

 

                        Águas que cantam, que soluçam, que fremitam

                        Que encapelam, ou quase serenas dormitam,

                        Que procuram em vão um alento, um refrigério.

                        Ouço tuas preces de relicário tristonho,

                        Vivendo uma vida, mas que preferem o sonho,

                        Sinto teus queixumes. Conta-me este mistério?

 

            Vejo tuas ninfas que presidem os mares,

                        Tuas ondinas e seus cantos cismares,

                        Cavalos e Carro Dourado que conduzem o teu Rei

                        Vejo sombras ígneas que se desvanecem,

                        Mas que instantes depois reaparecem,

                        Falam-me os teus segredos, eu nada sei...

 

                        A Gairá-porã que sobre ti faz o seu ninho,

                        Que em vez de assustá-la, afagas com carinho,

                        Até que os seus rebentos possam voar.

                        E depois, como um arfar de um grande peito,

                        Volvem aos teus soluços, que partem do teu leito,

                        Traduz-me os teus gemidos, este marulhar?

 

                        E então...

 

                        Os meus olhos fixaram às águas...

                        Eu sentia mais perto as suas mágoas,

                        E pouco a pouco, comecei tudo a ver.

                        Elas de pronto se desvelaram,

                        Em pequenas vagas me falaram,

                        Tudo aquilo que eu queria saber...

 

                        O profundo do mar parecia que vinha a mim.

                        Tudo desapareceu. Eu me via num jardim;

                        Soldados se digladiavam, numa luta desigual,

                        Travavam um combate brutal e fratricida,

                        Uma guerra aberta e sem guarida...

                        Como a alegoria, o espectro do mal.

 

                        Via corpos sem vida num Santuário,

                        Cadáveres rígidos num grande estuário,

                        Ó! Era destruição, o caos e desolação.

                 Abás e Cunhãs (homens e mulheres), carmins e cunhãs-tains  

                 (meninos e meninas) fugiam;

                        Sob as miras dos mainadares caíam,

                        Que os ceifavam sem a menor compunção.

 

                        Das mortíferas armas que nada poupavam,

                        O Poroomboessara e seus discípulos escapavam,

                 Para uma nova raça que Tupã-Tatá (Deus do Fogo sagrado

                 prometeu...

                        Já livres dos sectários da assassina sanha,

                        Subiam exaustos conhecida montanha,

                        Quando algo de novo e sinistro ocorreu...

 

                        Uma tremenda explosão foi ouvida,

                        E a Terra em cheio foi sacudida,

                        Por abalo funesto e conseqüente...

                        O Poromboessara fechando a comporta da Arca...

                        Falou como justo e Patriarca:

                        A Esperança da Colheita está na Semente...

 

                        No mesmo instante as águas revoltadas,

                        Subiam aos montes como que empurradas,

                        Seguindo a rota que os homens lhas deram.

                        O poder dominante foi derrubado...

                        As água subiam. Tudo estava acabado...

                        Porque assim eles o quiseram.

 

                        Depois que tudo se fez, em espesso véu,

                        As primeiras estrelas já apareciam no céu.

                        Olhei o infinito, o espaço, a amplidão;

                        Vi Jaci (lua) de luz pálida enlanguescida.

                        Como que presenciasse e estivesse entristecida,

                        Porque as águas me fizeram a Grande Revelação...

                        Voltei a falar, elas ainda murmuravam,

                        Cantavam baixinho, mas, não mais soluçavam,

                         E disse: Tupã (Deus) é o mantenedor que a tudo

                         perpassa...

                        Durmam em paz. Karuna é a Justiça...

                        Iama, o Executor, fazendo da terra uma liça,

                        E o Ara-Porã (luz bela) iluminará os descendentes da

                        raça...

                       

                        E agora... As amorosas a contemplam embevecidas,

                        Murmuram baladas e beijam comovidas,

                        Mirando-te como se foras a Rainha do Oceano.

                        Formosas ondinas tecem guirlandas delgadas,

                        Engrinaldam tua fronte com potiras-karinas

                         (flores alvas) lizadas,

                        Que jamais nasceram no mundo profano.

 

                        Durma Ó bela adormecida...

                        Tuparanã (Netuno) com seu espesso véu te vela,

                        Não deixando que os gênios da procela

                        Arrebatem o sono, de que és possuída;

                        Sob o espelho vítreo em que repousas,

                        Fragmentos coloridos parecendo lousas

                        Relembram o passado quando eras ressarcida.

 

                        Mas... nas noites dos tempos desta letargia...

                        Queimaram-se os resíduos da felonia,

                        Que te fez chorar, escondendo tua exprobração.

                        Chegando o Rei em seu Carro de Ouro,

                        Teus Irmãos recitarão salmos, não haverá desdouro,

                        Em Hosanas decantarão a tua Redenção...

 

                        Despertarás...

                        Caminharás sob a égide da graça,

                        Novamente libarás na Excelsa Taça

                        O Licor Universal da sapiência...

                        As portas do Mundo ser-te-ão abertas.

                        E então, em ti, vibrará a Quinta Essência...

 

                        Quando terminou a poranduba de Um, aquele Cavaleiro, que saíra das entranhas do Grande Mar, sorriu para Bartira e despediu-se com estas palavras:

                        --Salve Bartira, alma imaculada, Filha das Sagradas Terras-Brasis! A minha paz deixo contigo, agora e para sempre, Ó divino e terrenal símbolo da pureza e amor...

                        E novamente, entrando nas águas azuis de Tupãci, desapareceu. Longe, bem longe, Bartira ainda ouvia...

                        --Quem ama tudo sente, porque o amor é divino. Nobilita a alma e a faz chegar mais próximo de Tupã. O que sai do coração é bonito, porque é espontâneo e vem do infinito. Quem ama tudo sente... quem nada sente, tudo ignora, a sua alma é seca como se areais do tabeíma (deserto).

                        E assim aquela voz se perdia, repercutindo nos sete horizontes, como doce carrilhão suave e sonoro. Bartira emocionada chorou. Suas lágrimas banhavam suas faces escaldantes e iam salpicar a sua araçóia, que bem harmonizava com sua tês morena-mate. Ela pouco faltava para chegar putuna (noite), a mãe das trevas. Seu pai já estava apreensivo e vinha a sua procura.

                        Sabendo que ela sempre passava grande tempo na praia, ele para lá se dirigiu, encontrando-a desfeita em lágrimas. Assustado por encontrá-la chorando, seu amoroso genitor perguntou-lhe:

                        --Bartira, minha querida filha, o que houve contigo? Alguém te magoou?

                        --Não, meu pai... foi emoção. Não te assustes, eu vou te contar.

                        Refeita a emoção, Bartira passou a contar o ocorrido. O vigilante das Terras-Brasis ouve com atenção e depois sorrindo abraçou afetuosamente aquela alma tão pura, no corpo de uma menina-moça, e alegre exclama:

                        --Bendita sejas minha adorada e amantíssima filha. Que Tupã e Tupãci te inspire e te guarde.

                        --Obrigada, meu pai, muito obrigada.

                        --Agora, minha filha, vamos que já é tarde. E no percurso da praia até a ocara (pátio da taba), de vem em quando parando aqui e ali, pai e filha contavam um para o outro as revelações recebidas do Grande Espírito da Corte de Tupã...

 

                        X – A TABA ITAPARICA

 

                        Guaçucassaba (a Grande Cunhã), o Valente guarini (guerreiro) Tupinambá (descendente dos Tupis), já havia alcançado o seu objetivo, que era entregar a sua pena de araracanga (arara macau de cor purpurina) e transmitir a mensagem ao Turuçu-Etê (o Muito Grande, o Iluminado), Apiabaçu, o morubixaba (grande chefe) da Taba (aldeia dos índios de uma nação) Itaparica (anteparos de pedras), que por cortesia era hóspede de honra e se preparava para tomar parte na litania daquela Taba, que, logo esta terminada, regressaria à sua nação, conforme as recomendações de Saixê (pássaro de linda plumagem).

                        Na mesma ocasião chegava Ataraçu (o Grande Caminhante) a Nhoessembé (Ilhéus)...

                        Na grande clareira da Taba Itaparica, num elevado, estava o Santuário que era construído de uma grande pedra, semelhante a uma mesa quadrada, e, por cima desta, estavam a Grande Kaguaba (Taça) e a Reluzente Jaguara (estrela Vênus, Vésper) de Mboiras Azuis (missangas azuis).

                        Três Grandes Círculos, conforme os cerimoniais Tupis (Filhos de Tupã), davam a formação para a jeruressaba a Tupã (oração a Deus), ficando seu santuário no centro e, a seu lado direito, o Sagrado Maracá (Pendão-Estandarte) Verde-Amarelo em tamanho gigante.

                        Na extremidade oposta, em frente também ao Santuário, estavam os Sete Anciãos do Nhomonguetá (Conselho dos Sete Anciãos mais velhos da tribo com o Cacique, o Pajé-catu e o Chefe dos Guerreiros) da Taba dos Anteparos de Pedras, com os seus nomes de: Petaim (Número Um), Mocoê (Número Dois), Mburaquê (Número Três), Irundu (Número Quatro), Pê-Jara (o Senhor do Caminho), Aba-Ponga (o Gentil) e Pitibonçara (o Ajudante) com suas respectivas cunhãs (genericamente todas as fêmeas e mulheres).

                        Apiabaçu, o Grande Iluminado, o Cacique da Taba Itaparica, depositou a sua pena de araracanga no centro do Santuário. Vestia uma uburu branca (calça comprida branca), com uma acaiaba (manto de penas) de penas de araras verdes e amarelas caindo em seus ombros.

                        Sua fronte era cingida por uma acangatara (penacho, capacete de penas) das mesmas cores, havendo em seu pescoço belíssimos aiucaras de mboíras verdes, amarelas, azuis e brancas.

                        Sua fronte era cingida por uma acangatara (penacho, capacete de penas) das mesmas cores, havendo em seu pescoço belíssimos aiucaras de mboíras verdes, amarelas, azuis e brancas.

                        Era ladeado à esquerda pelo Grande Guerreiro Suassuarana (a Grande Puma) e à direita pelo Pajé-catu (Sacerdote da Taba) Upinduara (o Verdadeiro). À sua frente, de frente para o

Santuário, estavam as belas cunhãs-mucus (donzelas) Paraguaçu, filha do cacique, que alimentava o fogo da Pira Sagrada, ladeada à direita pela grácil e gentil Jurucê (agradável no falar, falante), filha de Upinduara, e à esquerda pela formosa Uruaporã (a Bela Concha das Águas), filha de Suassuarana.

                        Fez-se silêncio...

                        Apiabaçu fala ao povo de sua taba:

                        --Queridos Irmãos!...

                        --O nobre Guaçucassaba, guerreiro da Valente Taba Tupinambá, nosso irmão, nos traz uma mensagem do seu Ubixacatu (o Grande Chefe), o nosso amantíssimo Aíra (Filho Varão ou Irmão), o sapiente Tibiriça (Vigilante da Terra)...

                        E deu para a Taba a mensagem...

                        Continua o Apiabaçu:

                        --Neste momento, abro o cerimonial Tupi e entrego os serviços ao Nobre Upinduara, Pajé-catu (Sacerdote) de nossa taba.

                        E saudando os da Corte de Tupã, terminou com estas palavras:

                        --Oro-moetê-Ara-Tupã-Kabaius (Nós saudamos, Ó Luz de Tupã, como também os Teus Ungidos)!...

                        Upinduara tinha as mesmas características de Saixê: bom, leal, de nobres e altruísticos sentimentos, como também conhecedor profundo das panacéias que curam os males do corpo e da alma.

                        Elevando os braços para o alto, iniciou a Ladainha de Itaparica, evocando as virtudes dos Poreroigassaparas, os Barqueiros das Águas do Ibaca (céu) do Paranã-Guaçu,  louvando o Grande Espírito da Ibi (Terra), salmodiando e dando hosanas ao Todo e Poderoso Tupã que reina na Ibi, no Ibaca e no Ipió (Infinito).

                        Assim terminou esta Maranduba (história, conto ou poema de uma nação) Tupi:

                        --Contigo a Glória e o Esplendor, ó Oca-Angaturama (Casa Santa, Templo) do Nhuvaru-Porã...

                        Ó Ecoaba (Lugar ou País) das Apés-Pirajubas (Escamas de Ouro),

                        Poranduba das Sete Moradas,

                        Doces Mistérios primazes e viris

                        Ó Oca-Angaturama, dócil e encantada,

                        Etama (Pátria) Longínqua... Clarificada...

                        Que inspira e enobrece as Terras-Brasis!...

 

                        Ó Iguaçu (Grande Rio), ó Itupeva (Cachoeira) de pérolas,

                        Ó Águas Inefáveis de Ondas Cérulas,

                        Aprazíveis de Policroma Nuança!...

                        Ó Piá-Endi (Coração Ígneo) dos Divinos Pendores.

                        Sagrado Mitima (Jardim), onde se cultivam as flores,

                        Que perfumam e exaltam a Santa Aliança.

 

                        Ó Grandiosa Ibiaté (Terra Verdadeira),

                        Berço do amantíssimo SUMÉ (MANU, misterioso Guia e Legislador dos Tupis)

                        Onde a Jaguara santa a doce balada!...

                        Ó Ara de primorosos jaezes,

                        Reinado e Sacerdote dos Deuses,

                        Ao Advento da Raça Dourada!...

 

                        Ó Musa dos Profetas Celestinos,

                        Sonho e esperança dos peregrinos,

                        Que buscam felizes o seu Eldorado!...

                        Doa-os com teus dons e tesouros,

                        Enfeitiça-os com teus Filtros de Ouro,

                        Chamando-os de filhos bem-amados...

 

                         Ó heróica e nobre Manoa (Cidade Sagrada, habitada

                         pela Corte de Tupã)...

                        Som eterno que inspira e ecoa,

                        O casto, o belo e fraterno amor!...

                        Nesta hora cruciante e decisiva,

                        Não permitas de teus filhos a recidiva,

                        O perjúrio, o fracasso e o amargor...

 

                        ...................................................

 

                        Terminada a jeruressaba, Guaçucassaba regressa a Pacatá (Porto Seguro), e no caminho encontra-se com Ataraçu, que chegava de Nhoessembé com sua missão também cumprida.

                       

                        A chegada dos Mimondós (mensageiros) na Oca de Saixê

 

                        No segundo mês do ano, em que deveriam aportar em Pacatá os 13 igaraçus (navios) do Apiaba (Varão Primogênito, enviado de Deus), que traria no seu escudo d’armas os Ramos de sua Árvore Genealógica e os Três Cabritos, regressavam à Taba Tupinambá os mimondós: Cabapuama (Velos Corredor), Itaipu (a Pedra do Monte), Tangará (Pássaro Irrequieto), Ecoeté (o Corajoso), Apuama (o Ligeiro), Pissaguaçu (o Grande Pescador) e Apecatu (Aquele que vai longe), que tão bem cumpriram suas jornadas no menor espaço de tempo, e que logo a seguir foram se reunir a Guaçucassaba e Ataraçupara, para se apresentarem a Saixê, que já os esperava com o coração transbordante de alegria, na Ogueda (porta) de sua oca.

                        O Pajé-catu abraçou cada um e convidou-os a sentarem na sua patagui (esteira de palha).

                        Sua nobre e boa esposa Umari (Vaso de Perfume), mais uma vez, veio servi-los com amabilidade, trazendo o gostoso manauê (bolo de fubá de milho e coco com favos de mel de abelha) e o refrescante cambi-inajá (leite de coco) com água doce.

                        Foi quando o Grande Irmão Aíra falou:

                        --Aíras-catu (Meus bons irmãos), eu me sinto feliz e muito grato, por termos dado os primeiros passos nesta sublime missão. Bem certo está Icaraí (Água boa e benfazeja), como também eu estou, na confiança que depositamos em vocês, pela resistência e capacidade. Sinto-me lisonjeado pelo apoio de nosso bom e amado Tibiriça, que confiou também em nós. Amanhã é dia de Jacipeçaçu (Lua Nova).

                        --E todos nós estaremos na Grande Oração, reunidos...

                        --Agora, ide para junto de vossos familiares e descansem. Eu comunicarei ao nosso Morubixaba a boa nova e estaremos na grande clareira amanhã, na hora aprazada para a Jeruressaba a Tupã... Que Ele dê a todos vós um descanso confortador. Vós bem o mereceis.

                        Despedindo-se, saudou-os:

                        --Anauê-xê-iquira-catu (Salve meus bons irmãos)...

 

                        XI – AS LUZES DOURADAS

 

                        A noite ia alta...

                        Pacatá (Porto Seguro), Itaparica (anteparos de pedra), e Nhoessembé (Ilhéus), dormiam... Os pássaros noctívagos de vez em quando eram notados pelos seus piados e gemidos tristonhos. As águas das cachoeiras eram ouvidas a grande distância pelo rumorejo de suas quedas. O farfalhar macio das mocajubeiras e de toda a mata parecia balada para adormecer. O céu de um azul profundo, com seus pontos luminosos lusco-fusco, parecia uma nuvem de pirilampos, embelezando ainda mais aquele zimbório majestoso da natureza. A lua, quase velada pela serra, refletia uma réstia de luz sobre a praia e se estendia por todo aquele mar verde-azul, que refulgia com os meneios de suas marolas, parecendo saudar aquelas praias encantadoras das Terras-Brasis. Em dado momento, saindo das entranhas da Terra e do Mar, como se fosse fogos de santelmo na cor alaranjado-dourado, subiam ao infinito transformando-se em luzes pelos céus, qual poala dourada, e tomavam a forma de grande triângulo, do qual dois, dos três vértices, apontavam para o oeste, e o terceiro, para Itaparica... E assim ficou até que os primeiros raios do sol banhassem e inundassem com sua luz, todas aquelas terras.

                        O Uirapuru (pássaro sagrado dos tupis) arribado de outras plagas... e pousado lá no alto do inajá-guaçu (coqueiro), saudava a Grande Taba Tupinambá (descendente dos tupis) com seus gorjeios trilados e sonoros. E quando o Uirapuru cantava, toda a mata emudecia... E assim começou um novo dia para os filhos de Tupã (Deus). Os seus fiéis servidores já se preparavam desde cedo para a Grande Oração, limpando a clareira de sua taba, e colocando em seus lugares a Grande Jaguara (Estrela Vênus, Vesper), o nobre Maracá das Terras-Brasis, e a Grande Kaguaba (Taça), que seria, mais tarde, cheia com as águas do Buranhém (rio das águas falantes), e dada a beber ao povo Tupinambá, durante o cerimonial. As cunhãs (as mulheres e fêmeas) cantavam tecendo novos saiotes e aiucara (colares, enfeites) para seus companheiros. As cunhã-mucu (donzelas) faziam o mesmo para darem de presente aos seus eleitos, Os curumins e cunhãs-tains (meninos e meninas), corriam pela ocara (pátio) em alegre algazarra levando de um ponto a outro, compridas guirlandas para serem colocada em toda a extensão da caiçara (estaca de pau), pelos guerreiros e artífices.

                        E com o azáfama da preparação, as horas pareciam escoar-se. Assim mesmo, ficou tudo terminado antes da hora marcada para a Jeruressaba (oração).

                        Quando guaraci (sol) estava acima da terra sem fazer sombras, já todos ocupavam na grande clareira os seus lugares, e na Grande Kaguaba foram depositadas as águas do rio Falante e sagrado, dos Tupinambás.

                        Tibiriça (vigilante da terra) iniciou o cerimonial, pedindo que todos o acompanhassem. Falou assim ao seu povo:

                        Ó glorioso e Uno Tupã! Que nós, os descendentes da Taba Tupi, sejamos sempre dignos e leais a Ti, à Etama de Guaraci (Pátria do Sol), ao teu Abaré e Ara-Ubixacatu (Sacerdote e Monarca do Mundo), como também a todos os teus princípios. Que a Tua Ecó (Lei) nos conduza ao aprimoramento do nosso físico, da nossa alma e do nosso espírito. E que a Centelha Divina venha superar o nosso reino, dualizar a nossa consciência com a Tua, e que também zeles por estas Terras Sagradas que são o Teu Santuário no mundo dos homens. Nós, em Teu Nome, iniciamos a nossa Jeruressaba (oração).

                        Fazendo um sinal ao Pajé-catu Saixê (pássaro de linda plumagem colorida) solicitou que ele continuasse a Jeruressaba que vinha fazendo. E Saixê continuou:

                        Opacombó (dez) é o valor de Tupã. Os Sete Atributos estão assentados na Tua Vontade, no Teu Amor-Sabedoria, na Tua Atividade! As cores do Jiiba (Arco-Íris) refletem-se nos homens e plasmam os seus Estados de Consciência... Que da Caverna da Luz, das Águas Vertentes, do Mundo dos Deuses, do Órgão da Ação, do Peito do Mundo, da Corrente Sinuosa, dos Olhos que Choram, e do Umbigo do Mundo, possam, desses lugares Sagrados, sair para os homens os princípios da Grande Jaguara que iluminará o mundo; e que também das Igapopebas de Itajutinga e Amazonas (bacia destes rios), possa sair a Tua Raça Dourada... Hosanas a Ti, ó Tupã! Glória a Ti, ó Amorável Tupãci (Mãe Divina, esposa de Tupã)!

                        E Saixê fez uma pausa para logo depois recomeçar:

 

                        És o UNILATERAL...

                        O Sol Central que se reflete nos mundos,

                        Magia do som, das cores e dos mistérios profundos.

                        Princípio que cria, fecunda e ilumina;

                        Lei que realiza, Hálito que vivifica

                        E desce à Ibi (Terra) com a Bagueta divina...

 

                        És a EXPANSÃO...

                         Divina esposa e irmão de Itacoebê

                         (o azougue Mercúrio),

                        Grande vaticínio de todo um augúrio.

                        Mágico espelho de reflexo louçã,

                        Energia de Vida, que tudo aclara

                        Com os cuidados de Jacumatã (estaca rija) e Berara

                        (caminho das águas do vale),

                        Orando e velando no Templo de Tupã.

 

                        És a REALIZAÇÃO...

                        Nascida do Grande Oceano,

                        Onde o divino se torna humano...

                        Para imperar nos mundos do Ibaca (Céu).

                        Alma de Guaraci (sol), sopro de Tupã,

                        Sabedoria que traduz o Arapuruã (umbigo do Mundo),

                        E divinizada no Aracamã.

 

                        És a ITAÇU (Grande Pedra)...

                        A Ecó em quatro consciências

                        Através de Tetra-Graus-Seqüências,

                        Vida, Morte, Justiça e Superação,

                        Tupã que se dividiu para realizar,

                        Razão e Imaginação que vieram ativar

                        Os dinâmicos movimentos da Evolução.

 

                        És a INTELIGÊNCIA ...

                        Jaguara Flamejante, vitórias e jornadas,

                        Idade das Paixões já terminadas.

                        Veste purpurina de grande espiritualidade,

                        Instrutor e real iniciador,

                        Pontífice dominador da Quarta dimensão,

                        Como emanações da Divindade...

 

                        És o AMOROSO...

                        O Pacatu (O todo, o Absoluto) fez à Sua Semelhança,

                        E os Poromboessaras (Avataras) na sua pujança,

                        Modela-o para a grande Vitória.

                        Atíaia is-quê-rê e piranga (raios verdes e vermelhos

                         agirão,

                        E o estudioso Filho de Tupã,

                        Se faz indiviso e livre de exprobatória.

 

                        És o VITORIOSO...

                        Domínio do Capiaba-Ipuera,

                        Sublimação da matéria

                        Pela sublime influência dos Poromboessaras.

                        Carrosel-Esfinge do Livro-Destino

                        Que liga o segundo ao primeiro divino,

                        Viático Equilíbrio ao Divino Alfáraz.

 

                        És a ECÓ...

                        Balança, Ampulheta e libertação,

                        Efeitos das causas sem distinção,

                        Alma da Alma em movimento.

                        Símbolo do Ipió na Segunda escala,

                        Consciência que aflora com a cala,

                        E se desenvolve em rápido incremento.

 

                        És a SUPERAÇÃO...

                        Luz, sabedoria, justiça e santidade,

                        Senhor do Tempo, Médico da Humanidade,

                        Centro das forças que levam à Eucaristia.

                        Bastão de alta insígnia Setenária,

                        Círios azuis-dourados, de Candelária,

                        Expressando a sublime alegoria.

 

                        És a NECESSIDADE...

                        Uma cadeia em abertura

                        Ao nascer da criatura.

                        E o papassaba da terra se firmou...

                        Multiplicaram-se as formas,

                        Obedeceram-se as normas,

                        E a Grande Roda girou...

 

                        És a CORAGEM...

                        Vontade que inicia e realiza,

                        Força que aniquila e desmaterializa,

                        Boca de jaguar sem esforço aberta.

                        O túmulo de seu mestre é encontrado,

                        O mistério começa a ser desvelado

                        E todos os sentidos ficam alerta.

 

                        És o SACRIFÍCIO...

                        Sacrifício para a eternidade,

                        Empenho da Divindade

                        Para a Iniciação ioniana.

                        Alma do Capiaba (Quinta) ascendente,

                        Passividade apenas aparente,

                        Ponte da iniciação doriana.

 

                        És a GRANDE MÃE...

                        Mãos que executam guardando experiência,

                        Pés caminhantes que levam à consciência,

                        Ceifa e módulo das formas de uma semente.

                        Símbolo das vivências do espírito e da alma,

                        Buril mutável que lavra e espalma,

                        Ativa e religa os egos inerentes.

 

                       

                          És o EQUILÍBRIO...

                        E os sete pedaços duais de Tupã foram achados,

                        E o túmulo do seu mestre transladado,

                        Harmonizados foram os sentidos seus.

                        Volta ao equilíbrio preponderante,

                        Da vida-luz exuberante,

                        E redivivo é o seu Deus.

 

                        És a GUAÇU-ARA (Grande Luz)...

                        Assim se fez e veio a Luz,

                        O Senhor dos Elementos conduz,

                        Fauno e Fauneza se polarizam.

                        E como se fossem operantes calandras,

                        Gênios, Iaras (habitantes das águas dos rios),

                       Teju e Ibitu-catu (bons ventos) com as Fadas se

                        afinizam.

 

                        És a REBELIÃO CELESTE...

                        Poderes inebriantes emocionais,

                        Iporus (dilúvios), maranas (guerras) e abalos sociais,

                        Os levaram a mais estéril savana.

                        E a Grande Torre se desmoronou.

                        Na queda a Capiaba germinou,

                        Frutificando a Anama (raça) Ariana...

 

 

                        És a IMORTALIDADE...

                        Natureza tão bela e pura,

                        Setenário que expressa doçura,

                        A síntese do Trono e do Poromboessara.

                        Potira (flor) simbólica da imortalidade,

                        Amor perene à humanidade,

                        É o grandioso Verbo que tudo aclara.

 

                        És JACI (Lua)...

                        Que vertendo lágrimas é açulada,

                        Por dois Jaguamimbabas (cães) que vela e guarda

                        A linha cíclica do Sol.

                        Malogro de uma bonança,

                        Delonga de uma esperança,

                        Para incremento de um arrebol.

 

                        És o SAPIENTE GUARACI...

                        O saber pela iniciação e realização;

                        Condicional é a sua libertação,

                        Com espírito e matéria realizados.

                        Guaraci e Jaci recebem a recompensa

                        Pelos trabalhos que a Ecó os apensa,

                        E os estados de consciência exaltados.

 

                        És a MOANGA (julgamento)...

                        Julgamento e ressurreição,

                        Apelos aos Vasos Perfumados...

                        Pelo advento que sempre há de vir.

                        Uma Anama-bi-mentalizada,

                        Com a mente mais afinada,

                        A Nova Nhemonhanga (Geração) a Luzir.

 

                        És o DESLUMBRAMENTO...

                        Setenário realizado, grande luzerna,

                        O Aíra (Filho varão, irmão ou família) pródigo volta

                         À oca (casa) Paterna, com a feliz redenção da bela

                         luz Poranga.

                        Vivência, consciência e dualização,

                        No esplendor e final da Evolução,

                        Na gloriosa Jaguara de Ara-Porã

                       (Luz bela de Vênus)...

                       

                        És a SÍNTESE... O MUNDO...

                        Volta à sua Mansão, ao elemento primordial,

                        Com o conhecimento pleno da Grande Kaguaba:

                        São os louros e a glória a sua palma.

                        A consciência plena perpetuada,

                        Da virgem, a veste grosseira é retirada,

                        E a Sucuri morde a sua própria cauda...

 

                        Quando Saixê terminou esta Maranduba (história, conto ou poema de uma nação), suas faces se transfiguraram e com voz suplicante continuou:

                        Ó Pacatu misterioso! Que teu Guaçu-Paranã sem Iembijéia (Grande Oceano sem Praia), guiado pela inteligência e vontade de Tupã, faça descer de Ti a Guaçu-Endi (Grande Luz de Fogo), iluminando e unindo para sempre as tabas dos Para-Endis (Mar das Luzes de Fogo), da Iembijéia-Jobassipabaçu (Praia dos Lençóis), dos Temiminós (netos dos tupis), da Taba de Ipaú-Maraiú (Ilha de Marajó), dos Caiçara, da Amandiquira (Mantiqueira ou Manteiga Clarificada), de Arapuruã (Umbigo do Mundo), dos Nhoessembés, de Itaparica e dos Tupinambás.

                        Desce, ó Sublime Essência! Desce das misteriosas águas e vem banhar com Tua Luz diáfano-dourada as nossas mentes e os nossos corações, para incrementar em nós a Tua Vontade, o Teu Amor-Sabedoria, a Tua Dinâmica-Atividade, fazendo destas Terras-Brasis, a Terra da Etama Sagrada do Grande Poromboessara.

                        Desce, ó excelsa, ó magna, ó sutil essência das entranhas do Guaçu-Paranã, e que Tua Luz seja para estas Terras-Brasis o seu eterno Guaracapá (Escudo)...

                        Naquele instante o céu se abriu e Ela desceu iluminando a todos e a todas as Terras-Brasis, como se fora um enorme meteoro de Luz flamígera ou uma verdadeira chuva de ouro.

                        No santuário, a Grande Kaguaba e a Sagrada Jaguara refulgiram com intensidade. O Céu parecia estar unido à Terra..., e refletia no horizonte uma linha de Sete Palmeiras e as cinco linhas da Brilhante Jaguara. Tibiriça, naquele encantamento feliz e divino, bradou com voz possante:

                        Anauê (Salve) ó Poderoso Tupã! Anauê ó Abaré de Tupã e Ara-Ubixacatu do Nhuvaru-Porã (Salve, ó Sacerdote do Altíssimo e Rei do Mundo, Senhor do Campo Dourado)! Anauê Brasil! Kat-Karu-Kabaí-Kassat-Kara-Katu (O Céu se cobre de esplendor para saudar um Grande Ciclo)...

                        Sua voz ecoava nos Sete Horizontes, como um canto de amor e de glória ao seu Deus... Saixê e Icaraí (água boa e benfazeja) sorriam... Os Sete Anciãos, com suas esposas, regozijavam de alegria.

                        As três Sacerdotisas da pira: Umari (vaso de perfume), Bartira e Iraci (doce mãe), emocionadíssimas, ao mesmo tempo sorriam e choravam. Os Mimondós (mensageiros), os guerreiros, com toda a taba, agradeciam a Tupã por ter ouvido suas súplicas, afastando a ameaça que pesava nas Terras-Brasis, que por força da Ecó, era, é, e será o Arapuruã, onde no seu ventre existe a Oca-Angaturama (Casa Santa, Templo) do Abaré e Ara-Ubixacatu de Tupã, como também o Piá-Endi, ou seja, o Coração Ígneo...

                        A mui heróica e formosa Pacatá, a doce e divina Itaparica e a leal e grácil Nhoessembé, ajudadas pelas Sete Mimosas Irmãs e os Filhos de Tupã, com charruas e arados, tinham felizes trabalhado e preparado carinhosamente as terras, para o Aíraçu – o Filho Mariz, o Apiaba (varão primogênito, Enviado de Deus) que traria no seu Atapinhaçu (Escudo, Brasão de Armas) os ramos da Jetaíba (Árvore Real) e os Três Siguassumes (cabritos) – chegar à Índias-Brasis, fazer a Sementeira Brasílica, e dela sair mais tarde a Anama-Jubá (Raça Dourada)...

                        E ele chegou de além-mar às suas terras de origem...

                        Os poetas, menestréis, escultores e pintores, decantaram e decantam ainda com ardor, pelos Sete Horizontes, em Odes, em Trovas, em Formas e em Cores, a Sagrada Terra que na sua face hoje é conhecida no mundo inteiro, pelo sagrado nome de BRASIL.

 

                        Salve Brasil! Salve a Tua Bandeira das Cores Tupis!...